A escolha da roupa que cada qual veste é a forma pela qual a pessoa que ser vista. Reflete a necessidade do ser humano de olhar e ser olhado, infundindo no imaginário de quem observa a representação de como, de fato, gostariam de ser vistos.
Primitivamente, a roupa significava proteção para o corpo contra agentes externos que poderiam agredi-lo e contra as intempéries. Passaram a servir de adorno. Constituem expressão de quem somos, exercem forte influência em nosso comportamento e atitude, sendo adaptáveis às ocasiões: para o trabalho em ambiente formal, exige-se terno e gravata para homens. Mulheres devem estar de saia em entrevistas. Para a praia, traje de banho e roupas esportivas. Traje à rigor e vestido longo para festas de gala. E assim por diante, frente às diversas situações: busca de status, ostentação e diferenciação, escolha de formas e cores, luxo e simplicidade. Desse modo, o vestuário adquiriu uma função informativa.
Por meio de suas roupas, as pessoas se comunicam tal como se escrevessem ou falassem a respeito de si mesmas. Reflete quem é o seu portador, como se estampasse o seu “RG”: sexo, idade, ocupação, personalidade, estilo de vida, estado de espírito, sentimentos.
Destinam-se as roupas, também, para criar uma identidade social. Caracterizam as “tribos urbanas”, como os punks, por exemplo; identificam grupos sociais (funkeiros) ou religiosos (monges, hare krishnas) e, ainda, denotam autoridade (togas, paramentos). Neste sentido, a vestimenta presta-se a construir as externalidades.
Símbolo de liberdade e irreverência dos anos 1970, nada havia de mais democrático no vestuário do que as calças jeans, até que a “moda” chegou até elas! Os jeans passaram a ter brilhos, taxas, zíperes, cores, e “grifes”. Nesta passagem, torna-se visível uma distinção de cunho estético, modificando o que era comum e igual, manifestado agora através do “visual”, ao qual se incorpora diferenciação, status e ruptura.
A moda opera fortemente no sentido de construir aparências. E, aliada à publicidade, a moda se promove e se constitui em eficiente e eficaz meio de propaganda, veiculando ideias, atuando como poderosa forma de comunicação.
Assim foi, quando no século XV as mulheres passaram a vestir-se com roupas que deixavam à mostra suas curvas e ancas, buscando a diferenciação de gênero transmitida através da imagem de seus próprios corpos. E, mais tarde, ao libertarem-se de anquinhas e espartilhos, simbolicamente estavam comunicando o desejo de liberar seus corpos das amarras às quais sempre estiveram submetidas. Esta nova forma de vestir das mulheres, libertadora na origem, confundiu-se no imaginário masculino na medida em que, desde tempos remotos, a visão do corpo feminino, mesmo coberto em sua totalidade, desperta a ideia de sensualidade.
O ato de vestir-se, em seu caráter simbólico, consente que alguma coisa seja mostrada, porém, dialeticamente, deixa muito em escondido, questionado e dissimulado. Envolve situações que extrapolam o vestuário, manifestando aspectos sociais, psicológicos e culturais próprios de uma sociedade em um determinado tempo. Produzem generalizações, estereótipos e pressupostos sobre tipos de indivíduos ou grupos sociais específicos. Impõem padrões de roupas, comportamentos, cultura, sexualidade, status social e financeiro.
A sensualidade vem da moda que se apropriou e continua a apropriar-se do corpo feminino como forma de inculcar padrões morais e estéticos duvidosos veiculados através da mídia. Comercializa a imagem feminina relacionando-a com carros, apartamentos, eletrodomésticos e uma infinidade de mercadorias associadas a belas mulheres vestidas elegante e provocativamente.
Moda, mídia e costumes andam de mãos dadas não somente no que se refere às questões de gênero. Ao lado da política, constituem dispositivos de veiculação de conceitos e controle social que, via de regra, estão a serviço de determinados grupos da sociedade.
De modo a verificar como estas questões perpassam a sociedade brasileira, foi que o IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, órgão encarregado de organizar o Sistema de Indicadores de Percepção Social, realizou pesquisa em domicílios brasileiros objetivando identificar a opinião da população sobre as políticas públicas levadas a efeito pelo governo federal. Em 2013, a pesquisa versou sobre o que pensam os brasileiros a respeito da questão da violência contra a mulher. Realizada em 212 cidades brasileiras, entre maio e junho, consultou 3.809 domicílios.
Os resultados estão sendo divulgados em um momento no qual o tema da violência contra a mulher ocupa destaque na imprensa e na agenda do governo. O que não é à toa! A violência contra a mulher persiste de norte a sul do país, cujos números se encontram em altos patamares. O IPEA aponta que houve avanços, como a criação da Lei Maria da Penha em 2006, mas que ainda assim, a violência e o pensamento machista predominam na sociedade brasileira.
Concluiu que no Brasil de hoje predomina uma sociedade patriarcal, que busca controlar o corpo feminino e que culpa a mulher pelas agressões sofridas, num “sistema social que subordina o feminino ao masculino”, no qual “a violência parece exercer um papel fundamental”. Entre os entrevistados, 58,5% declaram que haveria menos estupros, “se as mulheres soubessem se comportar”, remetendo a culpa da agressão às próprias mulheres, deixando implícita a noção de que “é natural” que os homens não consigam controlar seus apetites sexuais.
Conforme os dados, 26% dos brasileiros concordam com a ideia de que “mulheres que vestem roupas deixando à mostra partes de seu corpo merecem ser atacadas”, podendo-se deduzir a existência de uma “cultura do estupro” no país. “Não basta que o comportamento feminino seja alvo de restrições maiores que o masculino: é tolerável que os desvios de conduta sejam punidos, por meio de violência sexual”. Para a maioria dos brasileiros, conforme o levantamento realizado, “a mulher deve ‘dar-se ao respeito”, deve obediência ao marido e só se sente realizada ao ter filhos e constituir família”.
A população consultada reconhece outras formas de violência, além da violência física, especialmente a psicológica e a patrimonial. “A maioria concorda que atos de violência contra a mulher, em casa, devam ser punidos: 91% dos entrevistados concordaram com a afirmação de que “homem que bate na esposa deve ir para a cadeia”. Mesmo assim, a maioria acredita que casos de conflitos entre pessoas casadas possam e devam ser resolvidos dentro de casa, sem intervenção das autoridades: 63% acham que casos de violência doméstica só devem ser discutidos entre membros da própria família” (IPEA).
Aspecto importante e presente em todas as feições da pesquisa desde sua formulação até as respostas refere-se ao “gênero” como uma categoria determinante do modo como a sexualidade é vivenciada. Apresenta a trajetória da mulher e do homem de forma distinta e conflitante em função da maneira como os relacionamentos sexuais ocorrem, influenciados, sobretudo, pela posição do gênero masculino na tradição brasileira. Pressupõe o corpo da mulher como fonte de prazer, desprezando vínculos afetivos e sociais. Concebe o homem brasileiro como sexualmente ativo, sempre desejoso de sexo, desvinculado da afetividade, cuja virilidade exacerbada justifica a agressividade e a violência.
Outro traço peculiar da pesquisa é a desvalorização das características ligadas ao feminino já pré-determinadas nas assertivas que foram submetidas à consulta. Trazem implícitas, nos ditos populares, construções que, espera-se! -, sejam banidas da cultura e da linguagem popular. Reforçam em si mesmas a violência doméstica, a aceitação da violência sexual e a autoridade patriarcal de dominação masculina que se reafirma pelo recurso da violência, seja ela física, simbólica ou psicológica.
A tarefa de desconstrução de ideais pré-concebidas e prejudiciais à sociedade é feita por diversas vias. As principais delas são a educação comunitária e a promoção da convivência harmônica no âmbito familiar e nas relações domésticas. Mas as formas de consulta podem também contribuir ao utilizar metodologias melhor adequadas às pesquisas sociais como a pesquisa participante, na qual o sujeito, ao mesmo tempo, informa e reelabora a informação.
A mídia, em suas diversas formas, é outro poderoso instrumento que, em muito, poderia vir a contribuir com mudanças sociais e culturais. Os diversos meios de comunicação exercem influência no comportamento da sociedade, orientando costumes e hábitos, criando demandas e hábitos, modos de viver e pensar, fabricando modelos identificatórios. A TV aberta é a que maior influência alcança entrando em milhões de residências, com uma programação não escolhida pelo público.
O que passa na TV interfere na vida da população. Em particular, as novelas, levam as pessoas a imitar seus principais personagens, influenciando o modo de falar, o jeito de agir e vestir. Repete um padrão estético, particularmente de beleza corporal masculina e feminina à exaustão, procurando convencer-nos da importância de nos assemelharmos a ele para sermos aceitos socialmente. A paternidade duvidosa, a gravidez fora do casamento e a poligamia são veiculados como aceitáveis em novelas e reality shows. Reforça subliminarmente um padrão do corpo feminino como objeto de consumo nas imagens cotidianas, em reportagens (o “carnaval” é o melhor exemplo), na propaganda em geral.
Desta forma, pouco há de se estranhar os resultados da pesquisa IPEA. No que pese a retratação pública, diversas críticas sobre a condução do estudo vieram a público e pelas redes sociais, cuja mais relevante refere-se a seu caráter pouco científico. Contudo não se pode invalidar os resultados. Refletem o pensamento do agrupamento social pesquisado e corroboram com o desastroso resultado advindo das inculcações veiculadas e aceitas acriticamente exibidos pelos meios de comunicação.
O papel de destaque da comunicação de massa, igualmente, tem incentivado o consumo desenfreado. A publicidade que veicula comportamentos estereotipados é a mesma que sustenta os veículos de comunicação que induzem à compra do que não se precisa. Os mecanismos de “sedução” são similares. Nunca estivemos tão sujeitos à exploração midiática como agora. Como vitrines ambulantes, carregamos em nossa vestimenta marcas e grifes; aparentamos o status que os produtos conferem. O consumo passou a ser utilizado como forma de lazer: uma espécie de diversão para toda a família é ir às compras. Transformo-nos, assim, a nós mesmos, em objeto de consumo, em mercadoria apta a ser comercializada e veiculada pela mídia em qualquer embalagem.
A “moda” não está voltada somente para o vestuário. Abrange quaisquer atividades que satisfaçam os interesses humanos. Tudo que pode ser vendido desde que haja comprador. E a mídia se alia à moda realizando a tarefa de convencer as pessoas a consumirem cada vez mais. E se utiliza de pessoas famosas e atores – aqueles mesmos das novelas! -, para aguçar o desejo de comprar e parecer-se com a personagem que aquele ator representa. Compramos a imagem caricata de uma representação que a ideologia veiculada pela mídia quer que sejamos.
Nossa cidadania depende do quê e quanto consumimos. Nosso potencial de consumo decide nosso grau de inclusão social e de sucesso. E somos levados a acreditar piamente que nossa aparência, a roupa que escolhemos vestir, aquilo que temos, mesmo custando todo nosso salário, comprado em doze vezes no crédito, nem sempre pago em dia, foi unicamente por nós decido e é o que nos trás felicidade. A pessoa que cresce num ambiente consumista, dificilmente aprende valores subjetivos que o levam a ser capaz de refletir e analisar sua própria trajetória e as ideias que lhe apresentam.
Inspirados em falsos valores, na propaganda e na moda somos estimulados a ser mais e melhores a partir do que consumimos. A menina quer parecer-se com as atrizes e as cantoras que admira, usando as mesmas roupas que usam nos palcos e novelas, aguçando precocemente sua sexualidade. Nossos jovens almejam os belos e musculosos corpos que são exibidos na TV. O cabelo dos brasileiros cultivado na miscigenação racial passa por transformações químicas para alcançar um novo padrão nacional. Somos incentivados a termos todos o mesmo cheiro, o mesmo gosto e as mesmas ideias. Afastamo-nos de nós mesmos, da nossa identidade pessoal, daquilo que nos torna seres humanos únicos.
VERA BUSSINGER é presidente do
IDELT – Instituto de Desenvolvimento,
Logística, Transporte e
Meio Ambiente