“Como será o amanhã?
Responda quem puder…
[“O amanhã” – Simone]
A chamada era instigante: “Debates e Provocações”. O tema? Um estímulo à imaginação – mais ainda por coincidir com a chegada de Marty McFly ao futuro (“De volta para o futuro”), nesse esperado 21/OUT/2015. O foco? Algo presente praticamente em qualquer reflexão/discussão sobre o tema: Mobilidade urbana. O momento? Mais que oportuno: São Paulo, como muitos dos 95% de municípios brasileiros, inadimplentes ante a “Política Nacional de Mobilidade Urbana” (Lei nº 12.587/12), desde abril passado, está trabalhando por concluir a elaboração do seu “Plano de Mobilidade Urbana – PMU”.
Qualquer que seja o motivo, o certo é que o público foi numeroso no debate promovido pela revista EPOCA e FAAP: O auditório principal lotou; também um maior ao lado, com telões e, mesmo, boa parte dos pátios externos contíguos. Apesar da curta duração, aspectos relevantes foram levantados e discutidos (dos quais alguns são a seguir destacados – por maior afinidade pessoal):
Um debate sério, consequente, e comprometido sobre a questão posta deve, antes de tudo, começar pela constatação de que, nesse diapasão, tudo indica que seguimos em São Paulo, como na maior parte das metrópoles e grandes cidades brasileiras, um caminho inverso. Aliás, “A Cidade vai parar na (i) mobilidade urbana?” foi justamente o título de um dos mais concorridos e acalorados “Projeto 6 e 1/2” promovidos periodicamente pelo IDELT (degravação e apresentações disponíveis). E, a partir daí, balizar-se no surrado ensinamento de Albert Einstein: “Insanidade é continuar fazendo sempre a mesma coisa e esperar resultados diferentes”.
Um pouco de humildade também ajuda: “Para todo problema complexo existe sempre uma solução simples, elegante, plausível e completamente errada”, nos adverte H.L.Mencken, um ácido crítico social da 1ª metade do Século XX. Nem precisaria dizer, estamos frente a um tema complexo (como ficou claro ao longo dos debates); um tema multifacetado:
Mobilidade tem a ver com deslocamentos; sim. Tem a ver com alguns atributos de qualidade de vida urbana, como uso do tempo e comodidade/conforto; já o sabemos. Mas é mais que isso. Ela tem a ver com:
– Economia: A decisão de uma empresa de se instalar em uma dada cidade tem como uma de suas variáveis decisórias os custos de deslocamentos imputados a seus produtos e/ou serviços; seja dos insumos (incluindo mão-de-obra), seja da remessa ou distribuição. A decisão de manter-se, também; e de uma forma crescente. Ou seja: Mobilidade tem a ver com emprego, renda, tributos…
– Segurança: Algo a ser mais bem estudado é a intrigante correlação dos mapas de criminalidade e de mobilidade (no caso. de forma inversa). Uma hipótese, a ser analisada/comprovada, é que a presença do estado é menor onde a mobilidade é pequena. E, onde a mobilidade é menor, a criminalidade é maior.
– Meio ambiente: Em SP, “a poluição atmosférica mata 4.000 pessoas/ano” (Prof. Dr. Saldiva – USP/HC). Para ela, trânsito e transporte muito contribuem; da mesma forma que para a emissão de gases de efeito estufa: Cerca de 13% das emissões planetárias de CO2 (23% das associadas a energia – desmatamento e queimadas fora). Mas, no Brasil, é quase o dobro (42%), resultado da combinação de uma matriz energética mais “limpa” e uma matriz de transportes mais “suja” que as mundiais. Em SP é ainda mais: 57%!
A mobilidade para/na cidade do futuro pode ser discutida no plano das utopias, das ideias/conceitos, dos exemplos observados em outros países do exterior. Aliás, é normalmente nesse plano que a maioria dos debates tem ocorrido (muitas vezes quase envolvendo, como no filme, carros e skates voadores!); assim como a maior parte de dissertações de mestrado e teses de doutorado que abordam o tema. Ah! Quantas e quantas participações em seminários, no País e no exterior, foram justificadas por/com discussões desse tipo? Quantas e quantas visitas técnicas?
A possibilidade de se virar o jogo; de se infletir essa marcha aparentemente a caminho da i-mobilidade, requer uma mudança de postura; essencialmente balizada pelas lições de Michel Hammer (um dos principais pensadores de planejamento e gestão da virada do Século): “O segredo do sucesso não é prever o futuro. É prover, no presente, certas condições para prosperar no futuro que não pode ser previsto”.
Que condições seriam essas? Cinco sugestões:
1) Cidade em movimento:
Plantas e textos, por melhor que sejam, espelham, apenas, a cidade estática. Seu funcionamento, sua dinâmica (24 horas/dia, 7 dias/semana) requer outros instrumentos. Talvez, até, um vídeo-clip para a compreensão de diversos arranjos e situações.
Atualmente prospera, até, uma linha de planejamento que tem a mobilidade como eixo (“Transit-oriented development” – TOD) (01, 02).
2) Mobilidade e logística:
Quase sempre, quando se menciona/trata de mobilidade, é o deslocamento de pessoas que está em questão. O deslocamento de cargas e de serviços é algo raramente lembrado… porque é visto/enquadrado como logística.
E, pior, são tratados independentemente; como se o território onde atuam, atendem e que têm que dar respostas não são geralmente comuns. Como se os viários que utilizam não são, majoritariamente, os mesmos. Muitos dos provedores e beneficiários também. Não raro, as origens e destinos. Ou seja; um é insumo do outro; o outro insumo do um.
Talvez por isso é que a movimentação de cargas, quase sempre, só integra o capítulo das restrições: Restrição geográfica/territorial (“não pode aqui”); temporal (“não pode nesse horário”); tecnológica (“não pode com esse veículo”)… ou combinação delas; apesar de, historicamente, cidades terem se originado no cruzamento de rotas de comércio (fluxo de mercadorias; de cargas).
Planos de mobilidade, planos diretores, para maximizarem seus resultados, precisam/devem tratá-las conjuntamente; praticamente como se fosse uma abordagem nova: A mobi-logística, esta sim, de forma mais abrangente, está associada, pelo menos, à qualidade de vida (02), à economia, à segurança e ao meio ambiente – como acima detalhado.
Ou seja; algo nevrálgico para qualquer “cidade vivível” (Castells); do presente e do futuro – a justificar a imagem de André Mauraux: “A saúde das cidades, como a saúde dos seres vivos dependem, essencialmente, da saúde de suas artérias“. Estas, no caso, vão além de ruas e avenidas; abrangendo, também, rios, ferrovias, adutoras, dutovias, fibras óticas, etc.
3) Oferta e demanda:
Você se lembra de algum programa eleitoral ou plano de governo propugnando a redução de demanda de deslocamentos? Difícil, pois são raros! Mas de ampliação ou construção de novas avenidas ou estradas sim; certo? Linhas de metrô, BRT, VLT também; não? Pontes, viadutos, rotatórias, corredores, faixas… também; certo? Ou seja; obras/ações que visam ao aumento de ofertas!
Pois é: Cada deslocamento a menos (na demanda) é praticamente como se fosse um deslocamento a mais (na oferta)! E mais: Evidentemente que um deslocamento da Cidade Tiradentes à Lapa (em SP) “consome” muito mais infraestrutura (viários), combustível, mão-de-obra; e emite muito mais particulados e gases de efeito estufa que um deslocamento da Vila Mariana ao Paraíso; certo?
Portanto, a medição da demanda, a ser gerida, a ser planejada, seria mais adequadamente medida em passageiro-km (passageiro vezes km); e não meramente em passageiros ou deslocamentos (unitários; como ocorre atualmente em nossas estatísticas). Da mesma forma que a melhor unidade para se medir distâncias urbanas, em termos de mobilidade, é minutos/horas, e não km.
Essa é a razão, técnica (p-km menor; ainda que mantido o número de deslocamentos), para embasar as teses de “adensamento”, “verticalização”; que de algum tempo vem sendo defendida por muitos dos planejadores urbanos – obviamente compatível com a infraestrutura existente ou potencialmente implantável.
Inclusive pelo Prefeito Haddad e o Prof. Marcos Costa no debate; mostrando a diferença entre os 2 conceitos/variáveis e comparando dados de diversos bairros de SP: Cidade Tiradentes (14.000) X Sé (11.000) hab/km2, apesar da sua excelente infraestrutura para mobilidade & logística; a “verticalizada” Moema (9.000) X Sta. Cecília (21.000). Também cotejando distintos modelos internacionais de ocupação territorial; como Atlanta-US X Barcelona-ES.
Ah! Lógico que a mobilidade de cidades “adensadas” e/ou “verticalizadas” impõe o tratamento da mobilidade vertical (a par da costumeira mobilidade-horizontal; com a qual estamos habituados).
Outro exemplo de potencial redução de demanda? Pesquisa do SETCESP indicou que 11% dos shoppings na Grande SP não têm doca para desembarque (38% apenas uma). 17% não têm vagas de estacionamento para veículos de carga (34% de 1-10). Muitos deles têm horários restritos de recebimento… em alguns casos coincidindo com os de pico do trânsito. Procedimentos internos (do shopping ou das lojas) faz com que o veículo tenha que retornar, posteriormente, para trazer a carga. Ou seja, gerando demandas desnecessárias, artificiais que, sem grandes dificuldades, adotando-se estratégias/medidas de planejamento e gestão, poderiam ser reduzidas.
4) Referências e modelos:
Pessoas (passageiro, motoristas, motoqueiro, ciclista, pedestre), bens (cargas) e serviços tem sido o tripé da matriz da mobilidade. Mas um motofretista (80 kg) que conduz sua moto (120 kg) para transportar um documento (20 gramas), em que grupo se enquadraria?
Se também fosse considerado um outro tripé analítico, estruturado três outras variáveis, massa, energia e informação, talvez novas janelas se abrissem. P.ex: Tudo que for informação, em princípio, poderia ser digitalizado e não dependeria de movimentação física (portanto, na mesma linha anterior, reduzindo a demanda pelas vias).
Já em termos de tecnologia e de modelos, por que a Holanda e Dinamarca (dentre tantos outros países estrangeiros) são usadas como referência, apenas, de uso massivo de bicicletas? Por que quem visita tais esses países, além da bicicleta, não vê, se encanta, propõe e luta por calçadas e demais equipamentos para pedestres? Por mais disciplina e gentileza de todos que se deslocam (afinal a dimensão comportamental é um dos pilares do trânsito e transporte)? Pelo transporte hidroviário? Ou pelo ferroviário?
Afinal; isso poderia ir além do encanto e imaginação; poderia ter efeitos práticos: São Paulo é quase uma ilha! Com poucas obras seria possível implantar um Hidroanel de quase 200 km em torno do núcleo mais adensado da metrópole, com grandes ganhos para a mobi-logística.
De igual forma, aumentar a participação da ferrovia na matriz de transportes: A RMSP tem o privilégio de ter uma malha ferroviária de cerca de 300 km; implantada ao longo de um século e meio. Mas como potencializar seu uso sem a existência de pátios?
E pior; algumas áreas remanescentes, que poderiam ser usadas para tanto, estão sendo reduzidas ou cogitadas para outros usos. É o caso, p.ex., dos galpões semiabandonados da Av. Pres. Wilson (Ipiranga-Mooca). O risco é que o trem possa passar por SP, mas sem ter onde parar para suas operações de carga e descarga!
5) Plano e planejamento:
Planos não nos faltam! Por que então o “falta planejamento” (no Brasil), um bordão, é quase um axioma; uma explicação aceita pacificamente?
Atribui-se a Roosevelt a máxima: “Planos não ganham guerra; planejamento sim”. Mas que planejamento? O que nos falta ou estamos fazendo errado?
Certamente se nosso modelo de planejamento privilegiasse o “problema a ser resolvido” – ao menos tanto quanto as convicções, ideias ou desejos; se ele fosse mais um pacto que um enunciado oracular; se envolvesse tanto o “o que” como o “como”; ou seja, se não fosse, assim, tão esquizofrênico; se as equipes elaborantes fossem, efetivamente, multiprofissionais, muito provavelmente os planos resultantes seriam bem distintos:
As cidades (esse “ser vivo”!) e as sociedades (que em geral resolvem, caprichosamente, tomar rumos autônomos, bem diversos dos que definem os autocráticos planos!) se “rebelariam” (quase uma “sabotagem”!) menos; e provavelmente o destino de muitos planos não seria o amarelar, ou, mesmo, o esquecimento em gavetas e prateleiras. Também, por outro lado, muito tempo, energia e dinheiro deixaria de ser desperdiçado e, provavelmente, a taxa de execução do planejado seria bem maior.
Pois é: O debate foi bom; foi animado; foi concorrido. E agora? O “Plano de Mobilidade Urbana” pode ser um bom desaguadouro.
(*) Baseado nas minhas intervenções no debate, com o mesmo título, da série “Debates e Provocações”, promovida por ÉPOCA/FAAP
Frederico Bussinger é ex-Secretário de Transportes de São Paulo; Presidente da CPTM e Diretor do Metrô/SP