“Não! Não adianta destruir as chaminés (poluidoras),
se mantidos os sistemas que as constroem”.
[citação de memória de diálogo em
“Zen e a Arte de Manutenção de Motocicletas” – Robert Pirsig; anos 80]
Sim; foi um vexame! Uma humilhação!
E, para grande parte da população, agravando-o, o risco de ver a Argentina ser tri em pleno Maracanã… o mesmo palco onde, naquele longínquo 1950 (de triste memória!), nosso outro vizinho, o Uruguai, nos surpreendeu e tirou-nos a taça que estava à mão.
Esquema errado? Ou foi a escalação? “O time treinou muito pouco”, “neymardependência”, “não havia variação tática”, “a convocação foi errada”, “faltou preparação psicológica” … se dividem comentaristas procurando explicar a fragorosa derrota.
Mas algo parece uni-soar de norte a sul do País: “O Felipão é culpado”!
Ufa! Achamos o culpado. A catarse está garantida!
Imagem: Transmissão Rede Globo
Felipão vem recebendo duras críticas após a goleada aplicada pela Alemanha
Pelas experiências anteriores, o risco é ficarmos só nela. Ou, alternativamente, nos contentarmos com explicações superficiais ou que explicam-sem-esclarecer. É o caso, p.ex., do “apagão de 6 minutos” – a tese agora dominante, depois que a elasticidade do placar sepultou o álibi da ausência do Neymar e Thiago Silva.
Tá bom; fiquemos apenas na tese do “apagão”: Por que aconteceu o “apagão”? Por que só com o Brasil? É porque somos país-sede? É possível imaginar-se algo parecido com nosso algoz (a Alemanha); em algum momento? Trata-se de algo individual ou decorrente daquele arranjo na defesa? O deslocamento do David Luiz (da posição que o consagrou como sólida barreira e “o melhor da Copa”) tem a ver com isso?
Quem assistiu a entrevista do Felipão na véspera do jogo, explicando a solução para as ausências de Neymar e Thiago Silva (“…foi mais fácil do que eu imaginava”), e a coletiva de ontem, explicando a derrota, tem certeza de que ele não tem a mínima ideia do porquê! E, muito menos, de como evitar que o misterioso fenômeno venha a se repetir.
Tampouco parece ter consciência das diversas implicações para o País (“Eu assumo!”). E daí?. Resolve?
Pronto! Está confirmado: a culpa é mesmo do Felipão… esse cara que conhece pouco do futebol contemporâneo, que acha que o talento é suficiente, que não sabe desenvolvê-los, que “acha que pode resolver tudo com o blá-blá-blá dos livros de autoajuda”. Autoritário, centralizador, como o classificam alguns dos que convivem com ele diretamente.
Certamente ele é responsável. Sua substituição, lógico, faz-se necessária. Mas é suficiente? O grande risco é que a catarse, seguida por sua substituição, nos satisfaça e nos faça esquecer da catástrofe em pouco tempo. E, como de praxe, nos acomodemos:
Felipão está lá porque foi escolhido pelo atual presidente da CBF (que assumiu no rastro de uma renúncia rumorosa do seu antecessor, após 23 anos de mandato!). Este, está lá, porque as federações o elegeram. Seus dirigentes estão lá porque os clubes os elegeram. Os dirigentes do clubes estão lá porque foram capazes de articular esquemas só conhecidos para alguns círculos fechados; mesmo para boa parte dos seus associados. Quantos interesses! Quanta grana envolvida!
Esses são elos apenas da cadeia de escolha de técnicos. Mas certamente há disfunções/problemas, também, no processo de formação de jogadores, de organização dos calendários, da prestação de serviços aos torcedores, de comercialização de jogadores, de venda de espaços publicitários; etc: “Cada enxadada uma (potencial) minhoca!”; diria o Zeca Pinto; um simpático gauchão!
Certamente os dirigentes, as empresas de marketing esportivo, a imprensa, a “bancada da bola”, têm responsabilidades sobre o atual status quo. E, se quisermos ir mais adiante, talvez fosse bom avaliar o quanto nele influencia o “homem cordial“, de que nos fala Sérgio Buarque de Hollanda. Essa nossa tendência de “fulanizar” as críticas (“O que você tem contra mim?” – é um contra-argumento usual para se evitar o enfrentamento do conteúdo da controvérsia). O fazer seminários como um fim em si mesmos (que raramente encaminham para conclusões). O agregar projetos e chamar de planos (muitas vezes sem estar claro o problema a ser resolvido). O fazer planos e não cumprí-los. A “terceirização” de responsabilidades (burocracia, corrupção, p.ex., é coisa dos outros: eu sou só vítima/paciente!).
Lógico; cada uma dessas facetas explica um pouco das mazelas do nosso futebol. Mas, também, em menor ou maior grau, as da gestão dos serviços públicos, das implantações de infraestruturas, da administração pública (e, em muito, também da privada!), os atrasos, os desperdícios, etc. etc.
Em acidentes aéreos certamente procura-se identificar culpa e culpados. Entretanto, antes e, mesmo, muito mais que isso, o que se busca é identificar as causas que o provocaram: Sim; no plural, pois já se sabe, que são raros os acidentes resultantes de causa única!
Para tanto, a indústria aeronáutica, em escala global (no Brasil está centralizado no CENIPA), desenvolveu um sofisticado sistema de coleta de dados, métodos analíticos, instrumentos específicos, padrões, procedimentos, capacitação (de técnicos), registros, divulgação… cujo foco é a prevenção: No que mexer para que o risco (sim; são eventos probabilísticos e não determinísticos!) de voltar a acontecer seja reduzido. E, para tanto, desenvolvimento tecnológico, ajustes procedimentais (manutenção, planejamento e gerenciamento), requalificação do capital humano, etc.
De uma forma mais ampla, aplicável às diversas indústrias e setores, a cultura da qualidade trabalha com o medir e o avaliar como instrumentos para a “melhoria contínua”.
Mesmo no plano meramente individual, o Cristianismo nos ensina ser a confissão base para o perdão. O marxismo-leninismo fala de auto-crítica. A psicanálise (e demais “psis”) tem formas diversas de reavaliar-se.
Individual ou coletivamente; pessoal ou sistemicamente, essas são condições sine-qua-non para que possamos evitar catástrofes semelhantes e fazer-nos voltar a sonhar com o hexa. Foi justamente o que fez nosso algoz da última terça-feira, após uma derrota; justamente para o Brasil, em 2002. Consensado que o futebol alemão chegara a um ponto de esgotamento, que precisaria se reinventar, pôs em marcha um plano baseado no tripé: formação de jogadores, intolerância com a corrupção e busca por mais torcedores.
Felipão é culpado, sim! Mas quanto de Felipão há em cada um de nós?
O sistema produz “Felipões”, sim! Mas tenho alguma responsabilidade no sistema que aí está?
Frederico Bussinger é ex-Secretário de Transportes de São Paulo; Presidente da CPTM e Diretor do Metrô/SP.