“Se correr o bicho pega;
se ficar o bicho come!”
[Conhecido dito popular]
“Mudanças negociadas somente têm início
quando os negociadores passam a enxergar,
claramente, a próxima etapa”
(Henry Kissinger)
“Diante de impasses,
mais importante que procurar resolver o problema,
é formulá-lo de forma diferente”
(Milenares provérbios, chinês e grego)
As manifestações do último ano venceram!
Venceram ao cravar definitivamente na agenda aquilo que há algumas décadas frequentava tanto estudos, artigos e debates entre técnicos e formuladores do setor, como sonhos/desejos difusos de usuários; da população, em geral. Agora, também de lideranças setoriais. Ou seja: a qualidade no transporte público. “Qualidade-FIFA”, como sintetizado pelos manifestantes.
E mais: Qualidade como um direito, “direito do cidadão; dever do estado”, bandeira contemporânea da redemocratização, lá nos anos 70/80.
Venceram ao legitimar e tornar irreversível a necessidade de transparência no setor; rompendo dogmas e estratégias de marqueteiros e de governantes desajeitados para o convívio e para a gestão democrática.
Foto: AFP
Manifestação por transporte coletivo melhor e mais barato realizada em BH em junho/2013
Venceram ao lograr reduzir, em poucos dias e após zigue-zagues de prefeitos e governadores, reajustes que haviam sido anunciados e que já tinham sido postos em prática em muitas cidades; a começar por São Paulo, Rio e as principais capitais do País.
Venceram ao conseguir envolver parlamentares e a imprensa e, com esses, a opinião pública em geral, com a ideia de que o binômio melhor qualidade e tarifas menores é algo inquestionavelmente possível: Bastaria que a “caixa preta” do sistema fosse aberta para que se identificassem as “gorduras das planilhas” (normalmente baseadas nas do GEIPOT – 01, 02) e se mapeasse os conluios de “máfias” dos “barões do asfalto” com os dirigentes públicos; incluindo corrupção.
Quase um ano já se passou. CPIs foram instaladas. Investigações foram feitas pelos órgãos fiscalizadores, de controle e reguladores. Por ora muitas hipóteses, politização e judicializações. De concreto, apenas medidas com resultados limitados ou sensíveis apenas no médio/longo prazo:
Na frente operacional, aproveitando uma “carona” político-mercadológica, a implementação de medidas imprescindíveis, mas que vinham encontrando dificuldades para serem efetivadas, como a ampliação de faixas para o transporte coletivo. E, no econômico-financeiro, aumento de subsídios, apesar de já ter havido diversas medidas de desoneração tributária. Por isso, uma busca (desesperada!) por novas fontes para arcar com tais subsídios.
Enquanto isso, os custos de produção seguem crescendo… e praticamente já “comeram” tais desonerações. E agora?
Lógico que não se pode descartar “gorduras” nas planilhas. Nem corrupções. Sim: Ambas devem ser enfrentadas!
A questão é: Supondo que ambas sejam totalmente eliminadas (o que não é simples!), ainda assim haveria margem para se reduzir (ou zerar) adicionalmente tarifas e/ou fazer os investimentos necessários para que se atinja o padrão de qualidade desejado? Alias, qual é este padrão? Temos consenso a respeito? Aparentemente não!
Há que se ter claro. Não nos iludamos: Produzir transporte público, de qualidade, é caro. Muito caro! Estima-se, p.ex. que apenas o custeio dos sistemas de ônibus nas cidades brasileiras, no atual padrão, custe cerca de R$ 60 bilhões/ano!
E pior: Os custos de produção são crescentes; seja devido à elevação dos preços dos insumos, acima da inflação (dos quais a mão de obra é o proporcionalmente mais relevante), seja pela redução da produtividade sistêmica, decorrente do crescimento acelerado do carregamento do sistema viário – tendência que se deseja reverter com a implantação de faixas e corredores.
Se, ainda mais, queremos melhorar a qualidade do transporte público (o que é desejável!), os custos tendem ser ainda maiores. P.ex: Não há dúvida que a coqueluche do momento, os BRTs, têm melhor qualidade de serviço que os corredores à esquerda. Estes que os à direita. Estes que as faixas exclusivas… Mas especialistas, mais diretamente envolvidos com a implantação de alguns BRTs, pelo País afora, estimam que seus custos operacionais podem ser acima de 15% que os dos corredores tradicionais! Metrô, no padrão de qualidade que foi consagrado, e nos ficou na memória, mais ainda! Como bancar?
A solução passa, inexoravelmente, por aumento de tarifas ou aumento de subsídios ao setor (em SP, Capital, já beirando R$ 2 bilhões/ano!). Ou, combinação dos dois. Mas, a essa altura, mormente em ano eleitoral, prefeitos e governadores pensarão duas… três… dez ou mais vezes antes de reajustar tarifas. Mormente ante as dificuldades que os “pioneiros” vêm enfrentando; p.ex: Rio (01, 02, 03, 04, 03), Porto Alegre (01, 02, 03, 04, 05) e Belo Horizonte (01, 02, 03, 04, 05, 06, 07).
Lógico que tecnologia pode contribuir. Mas, se os dados gerados não forem utilizados (como não o são, em muitos casos!), que resultados pode trazer? Lógico que normas e contratos, bem elaborados, também podem contribuir para garantir a efetivação dos padrões definidos. Mas, sem que sejam diligente e rigorosamente fiscalizados (um trabalho difícil, “arriscado”, e diuturno, como de dona de casa – por isso muitas vezes evitado!); sem que punições sejam aplicadas e, principalmente, executadas (algo que nem sempre acontece!), que efeitos terão?
O setor está numa sinuca de bico! Numa encruzilhada! Como sair dessa? Como compatibilizar todas as demandas (aparentemente incompatibilizáveis)?
Ainda que com tecnologia moderna, contratos adequados, fiscalização diligente e punições rigorosas, certamente a revisão da forma de financiamento do setor é inadiável; seja para seu custeio, seja para os investimentos necessários para se atingir o padrão de qualidade desejado (qualquer que seja sua definição).
A baliza é clara: Não dá para se bancar custeio e investimentos do transporte público (de qualidade!) apenas com tarifas e sincopadas dotações de orçamentos públicos! Não é possível (talvez nem justo!) que usuários banquem, sozinhos, o sistema! Os beneficiários, aí incluídos, principalmente, os empregadores (que, de certa forma, já participam do “Vale Transporte”), os concedentes de gratuidades (idosos, estudantes, etc.) e os usuários de transporte individual (que também se beneficiam de um transporte público de boa qualidade) devem participar do “funding” do setor.
O instrumento mais à mão, de imediato (sem que se limite a ele!), parece ser a CIDE, criada pela Lei nº 10.336/2001: uma contribuição “incidente sobre a importação e a comercialização de petróleo e seus derivados, gás natural e seus derivados, e álcool etílico combustível…” cujo produto da arrecadação seria destinada a “I – pagamento de subsídios a preços ou transporte de álcool combustível, de gás natural e seus derivados e de derivados de petróleo; II – financiamento de projetos ambientais relacionados com a indústria do petróleo e do gás; e III – financiamento de programas de infraestrutura de transportes”. Atenção: Custeio de transporte público urbano não estava explicitamente incluído na formulação inicial!
A Lei foi sendo alterada e re-regulamentada; em geral com sucessivas reduções de alíquotas. Há dois anos elas foram zeradas, de forma a poder serem praticados reajustes dos preços de produção dos combustíveis sem que isso implicasse em impacto, imediato, sobre os índices inflacionários.
Mas, lembrando do surrado “não há almoço de graça”, houve efeitos colaterais: Só de 2008 até as manifestações as estimativas é que deixaram de ser arrecadados R$ 22 bilhões com tais reduções (cerca de 1/3 dos custos anuais do setor no País; ou suficientes para algo como 15 anos de subsídios ao sistema paulistano; ou implantação de uma rede de metrô equivalente à atualmente existente em SP!).
A CIDE tem uma quádrupla conveniência/vantagem:
1. Existe no arcabouço jurídico: Bastam ajustes legais/regulamentares.
2. Tem mecanismos operacionais já testados. E, associado, p.ex., à “Conta-Sistema”, em SP (e congêneres em diversos outros municípios), mecanismo extremamente confiável, seria instrumento pronto e fácil para operacionalização, imediata, de tais subsídios. Seria como “glicose-na-veia”!
3. Tem duplo objetivo, simultâneos e sinérgicos: Aumentar e regular o fluxo de recursos para o transporte público, por um lado, e, por outro, onerar um pouco o transporte individual. OBS: Ela até pode até ser seletiva, incidindo apenas sobre a gasolina (aí contribuindo, também, para aumentar a atratividade do etanol – com benefícios, também, ambientais).
4. A se fazer conta: É possível que, no cálculo dos índices inflacionários (FIPE, FGV, etc.), os aumentos dos combustíveis, de imediato, sejam mais que compensados, no médio prazo, pelo retardo de reajustes do transporte público e/ou aumento do uso do transporte público.
Além do uso da CIDE, há diversos outros instrumentos/mecanismos sendo discutidos e projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional; discussões que precisam ser aceleradas por que o tempo se esvai e o risco de uma grande desorganização do setor está crescendo. Alguns falam, até, em colapso!
No próximo dia 19 de maio (antevéspera do primeiro aniversário das manifestações!) a Frente Nacional dos Prefeitos estará reunida em São Paulo e, certamente, este será um dos itens da pauta, na busca de saídas; saídas urgentes.
Mas, talvez, seu principal desafio (até para isso) seja estabelecer estratégias para que a agenda do setor seja redefinida. Isso na busca de instrumentos mais eficazes para implementação de qualidade, modicidade e transparência no setor… bandeiras das manifestações e de tantos técnicos e dirigentes que há décadas pensam o setor. A atual, pautada pela “caixa preta”, “gordura”, “máfia” tem nos imobilizado nessa busca de saídas.
Ah! Sim! Redefinição da agenda/pauta e, também, legitimação delas junto à imprensa e, principalmente, junto a usuários, população e opinião pública; em geral.
Frederico Bussinger é ex-Secretário de Transportes de São Paulo; Presidente da CPTM e Diretor do Metrô/SP.