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Hidrovias: A questão da Dominialidade


Pedro Victoria Junior*

 

Apesar de haver leis e artigos sobre a matéria, persistem
dúvidas relacionadas ao conceito de domínio das hidrovias. A
falta de clareza pode ensejar decisões não condizentes com a
realidade do setor. O texto é uma proposta do autor para que a
sociedade e os agentes relacionados à área de transporte
hidroviário interior iniciem urgentemente uma discussão sobre
a questão da dominialidade, uma vez que os governos
estaduais e federal veiculam a possibilidade de em futuro
próximo novos atores poderem vir a participar da gestão das
hidrovias nacionais.

 

 

O recente entendimento do Tribunal de Contas da União

Em resposta a representação da Secretaria de Logística e Transportes, acerca da concessão da UHE Três Irmãos, o Tribunal de Contas da União – TCU espediu parecer definindo a titularidade da eclusa de Três Irmãos como pertencente à UNIÃO. Essa decisão, segundo sua lógica e argumentos apresentados, estende-se às demais eclusas da Hidrovia do Tietê.

A Procuradoria Geral do Estado – PGE, por sua vez, alertou na oportunidade que eventual contestação ao TCU poderia expor o Estado de São Paulo a risco de elevados dispêndios, com pedidos de indenização relativos aos custos envolvendo a construção e manutenção dessas eclusas, até hoje suportados pelas geradoras de energia elétrica.

Muito embora a ressalva, admitiu-se assim a possibilidade de se questionar o entendimento dado pelo TCU.

Embora embasado em argumentos sólidos, o entendimento do TCU criou, na prática, uma situação, no mínimo, estranha. Ou seja: o Estado administra 800 km da Hidrovia do Tietê, mas não detém a dominialidade, a jurisdição, sobre as eclusas.

Mal comparando, seria o mesmo que um agente administrar uma rodovia da qual não detém o domínio sobre as pontes.

Acaba sendo um sistema incompleto, administrativamente fracionado, com claros riscos em sua eficácia operacional.

Reforçando a questão levantada pela PGE, a Lei nº 13.081/2015, que dispõe sobre a construção e a operação de eclusas em vias navegáveis e potencialmente navegáveis, estabelece o seguinte:

Art. 3º   A operação e a manutenção de eclusas ou de outros de transposição de níveis constituem serviço público, que pode ser prestado direta ou indiretamente pela União no corpo de água sob seu domínio ou pelo ente da Federação que detenha o domínio do corpo de água em que forem implantados.

De acordo com a Agência Nacional de Águas – ANA, o rio Tietê, no qual a Eclusa de Três Irmãos se situa, é de domínio do Estado de São Paulo. Portanto, pela Lei nº 13.081/2015 a Eclusa de Três Irmãos deve ser operada e mantida pelo Estado de São Paulo.

Quem opera e mantém, pela lógica, deve ser quem detém o domínio. Não se vislumbra hipótese onde um ente da federação detenha o domínio de um bem, enquanto outro o opera e mantém, diferentemente do que concluiu o TCU.

Analisando a questão da dominialidade

Se as eclusas, que operacionalmente são partes indissociáveis de uma hidrovia, são questionadas quando a sua dominialidade, o próprio conceito de domínio da hidrovia fica prejudicado.

Afinal, quem detém o domínio e a competência sobre uma hidrovia? Qual a abrangência desse domínio?

Antes de tentarmos responder essas perguntas, é necessário apresentar dois outros conceitos fundamentais.

Primeiro sobre a definição de hidrovia, e aqui vamos deixar claro que nos referimos às vias navegáveis interiores, não às marítimas.

Segundo o Ministério da Infraestrutura usa-se genericamente a expressão hidrovias interiores para designar as vias navegáveis interiores que foram balizadas e sinalizadas para uma determinada embarcação tipo, isto é, àquelas que oferecem boas condições de segurança às embarcações, suas cargas e passageiros ou tripulantes e que dispõem de cartas de navegação.

Embora seja um conceito bastante amplo, não é difícil questionar que algumas hidrovias da região Amazônia, por exemplo, que representam 80% das Vias Economicamente Navegadas – VEN não se enquadram perfeitamente nesta definição.

Neste sentido, e do ponto de vista institucional, socorre-nos o entendimento expresso por técnicos do Ministério da Infraestrutura em artigo publicado em Revista do TCU, para quem o conceito de hidrovia não pode coincidir com o de rio ou mesmo de via navegável. O critério definidor da hidrovia não é sua aptidão intrínseca em permitir o ato de navegar. O rio ou a via navegável tornam-se hidrovia mediante ato declaratório do Poder Público, que manifesta assim, uma intenção atual e futura em mantê-la ou dotá-la de condições que possibilitem seu uso como infraestrutura de transporte. Com esse ato declaratório, a hidrovia passa a fazer parte da rede básica da matriz de transportes adotada. (grifo nosso)

Por esse conceito, embora possa-se discutir o que venha a ser ato declaratório, é claro, por exemplo, a intenção e as ações do Governo do Estado de São Paulo em fazer do rio Tietê uma hidrovia. Ou seja, embora não formal, fica implícita uma declaração do Estado em constituir neste rio uma hidrovia. Se assim foi, e tem sido em sua gestão, seria o suficiente para definir que a Hidrovia do Tietê é de domínio do Estado de São Paulo?

O segundo conceito importante para a questão da dominialidade é o da gestão das águas.

A água, segundo Souza1, é um dos elementos naturais do meio ambiente e está inserida na categoria dos direitos difusos, isto é, daqueles direitos pertencentes a uma coletividade indeterminada e que transcende a classificação tradicional de direito privado e direito público, tem-se que o conceito de dominialidade das águas não pode ser visto sob o ângulo do direito privado.

Portanto, o conceito de dominialidade do rio ou do recurso hídrico está relacionado à competência sobre o seu gerenciamento, executado pelos diferentes entes da Federação. (grifo nosso)

Neste ponto, a Lei nº 9.433/97 estabelece em detalhes os conceitos, mecanismos e órgãos responsáveis pela gestão dos recursos hídricos. Segundo o conceito de usos múltiplos, as águas não são de dominialidade de um único agente, mas sim compartilhada por todos que sejam autorizados em seu uso.

Não se podem confundir esses dois conceitos.

Uma coisa é o gerenciamento do recurso hídrico, outra é a hidrovia, sistema que integra uma malha viária e é constituída, como dito, por ato declaratório do poder público.

Por conseguinte, conjugando esses dois conceitos, não há conflito em um Estado implantar uma hidrovia em águas de domínio da União e vice-versa. Não há conflito em o Estado de São Paulo implantar uma hidrovia no rio Piracicaba, de gestão federal, ou o Estado do Rio Grande do Sul administrar uma hidrovia na Lagoa dos Patos.

Para esclarecer ainda mais essa questão, a Lei nº 12.379/11, que cria o Sistema Nacional de Viação – SNV, estabelece que, quanto à jurisdição, o SNV é composto pelo Sistema Federal de Viação e pelos sistemas de viação dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

A fim de distinguir quais vias compõem os sistemas (rodoviário, ferroviário, aquaviário e aeroportuário) federais, a citada lei os relaciona em anexos.

Ocorre que os anexos da lei (anexos I a VII) foram vetados, sob a justificativa de que tais relações de rodovias, ferrovias, hidrovias, aeroportos e portos não refletem o estado atual do planejamento viário nacional, permanecendo válidas as relações constantes dos anexos da Lei anterior, a de nº 5.917/73.

Embora vetados, interessante observar que no Anexo VI – Relação Descritiva das Eclusas e Outros Dispositivos de Transposição de Nível em Rios Federais não constavam as eclusas do rio Tietê, que o TCU afirmou pertencerem à União.

Tramita no Congresso o Projeto de Lei – PL – nº 7.227/17, que altera a Lei nº 12.379/11 e, entre outras definições, reinsere os anexos anteriormente vetados.

Com relação ao Sistema Aquaviário, o PL sugere dois anexos: o Anexo IV A – Relação Descritiva das Vias Navegáveis Existentes e Planejadas de Domínio da União e o Anexo IV B – Relação Descritiva das Vias Navegáveis Existentes e Planejadas de Domínio de Estado ou Distrito Federal com Interesse Federal para Navegação.

Na segunda relação (de domínio de Estado) constam as hidrovias dos rios Tietê e Piracicaba. (grifos nosso) Ou seja, se aprovado, o PL nº 7.227/17 define com clareza o domínio das hidrovias dos rios Tietê e Piracicaba pelo Estado de São Paulo, reforçando a lógica, aqui levantada, de que as eclusas devam ser de mesmo domínio.

Conclusão

Resta claro, portanto, que os vários diplomas legais e infra legais, documentos técnicos e opiniões sobre a questão da dominialidade das hidrovias não são convergentes.

Até hoje não foi dispensada a devida atenção ao assunto, dando margem a interpretações diversas, face ao setor ser de amplo domínio estatal, o que facilita acomodar eventuais conflitos.

Entretanto, este cenário vem se alterando com a participação cada vez maior de novos agentes, principalmente do setor dito privado, a exigir definições mais claras.

É fundamental, para uma maior eficiência operacional, que um único ente da federação, quer seja União ou Estado, tenha o domínio amplo sobre a hidrovia que administra e todos os seus componentes, inclusive as eclusas.

Urge, portanto, se quisermos lograr êxito no aperfeiçoamento da gestão das hidrovias, inclusive com a participação do setor privado, que passemos a discutir a questão da dominialidade.

Referências:

  1. A Dominialidade das Águas e a Questão das Fontes Situadas em Propriedade Privada; Souza, M. M. S.. Rio Grande: Âmbito Jurídico, 2009;

 

*Engenheiro Civil, Especialista em Transportes e Gestão de Projetos
Consultor do Núcleo Hidroviário do IDELT

 

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