Frederico Bussinger
“O propósito da reengenharia é a reinvenção do negócio,
não seu melhoramento”
[Hammer e Champy]
“Eis que faço novas todas as coisas”
[Apocalípse 21:5]
A Autoridade Portuária de Santos – SPA (ex-Codesp) vem de anunciar que “pretende rescindir antecipadamente o contrato da Portofer… e buscar investimentos superiores a R$ 2 bilhões na ampliação da ferrovia interna do Porto (de Santos)”. Ou seja, decidiu enfrentar alguns dos imbróglios descritos no artigo anterior (“Depois de tanto esforço, ferrovias podem morrer na praia… de Santos”).
Nesse sentido lançou o “Aviso de Consulta Pública nº 01/2020 – SPA” (45 dias a partir de 23/DEZ/20) para “Obter contribuições, subsídios e sugestões para o aprimoramento dos documentos técnicos e jurídicos referentes à modelagem proposta pela SPA para gestão, operação, manutenção e expansão da Ferrovia Interna do Porto de Santos (FIPS)”.
Tal preocupação e essa intenção não são novidades. Nem a existência do imbróglio ferroviário na Baixada Santista; ainda que ele tenha se agravado sobremaneira com a renovação antecipada do contrato da Malha Paulista (Rumo), assinada em maio passado, até tornar-se “gargalo de grandes proporções no horizonte” (saturação até 2025 – daqui a 4 anos, portanto!): foi perdida, aí, grande oportunidade de se desativar essa “bomba relógio”, tratando da questão em termos operacionais, de governança e regulação. Também de se viabilizar, mesmo que parcialmente, os recursos ora “buscados” para investimentos; lembrando que a concessionária antecipou, pouco tempo depois, R$ 5 bilhões das outorgas devidas ao Governo Federal. Em tempo: qual foi/está sendo o destino desses recursos?
Melhor, porém, saudar-se esse verdadeiro presente natalino e o sentido de urgência agora imprimido. Também vários aspectos do modelo já antecipados: i) gestão integrada de malha; ii) Sociedade de Propósito Específico – SPE gestora, com a participação de todos os concessionários; iii) abertura para ingresso de novos participantes; iv) um tipo de “golden share” à SPA para definições estratégicas; e v) identificação de embasamento jurídico para dispensa de licitação, baseada no art. 28ss da “Lei de Responsabilidade das Estatais” (Lei nº 13.303/16) – enfrentando um antigo tabu.
Sob esse último aspecto vale registrar que a malha da Baixada Santista além, ou até antes de ser um “ativo” (foco, categoria analítica e métrica do PPI, do PND e de projetos governamentais das gestões recentes), é uma “função” pra lá de estratégica ao funcionamento do Porto de Santos. Também para a desejada mudança da Matriz de Transportes; da região e nacional.
E, claro, deve-se saudar a disposição da SPA e do Minfra de colocar tão complexo e multifacetado tema em debate; mais ainda porque o modelo, tal como está, apenas enfrenta parcialmente os problemas, incluindo-se a governança “que tem sido objeto frequente de críticas pelos órgãos de controle” (leia-se, TCU). Basicamente: i) o novo arranjo é limitado às ferrovias dentro da Poligonal (agora batizadas de FIPS); ii) só que, antes de enfrentar o imbróglio no/do Porto Organizado, onde as composições circulam com velocidade média de 5,7 km/h (velocidade de caminhada! – pg. 134 do PDZPS), há também imbróglios entre o pé da Serra e a entrada (terrestre) do Porto, distantes algo como 12 km. Mais na Margem Direita; mas também na Esquerda (vide artigo anterior).
Analogicamente, a iniciativa/proposta da SPA (e do Governo) é como no saneamento tratar-se da rede domiciliar sem preocupação equivalente (ou defasada) com a adutora. No sistema elétrico, aumentar a capacidade e o controle sobre a rede de distribuição, sem o equivalente na transmissão e/ou subestações. Ou, ainda, no sistema rodoviário, implementar-se um programa de desenvolvimento de estradas vicinais sem desenvolvimento compatível das estradas-tronco na região.
Por conseguinte, se implementado isoladamente o projeto proposto à Consulta Pública, o desempenho ferroviário dentro do Porto Organizado poderá, sim, melhorar. Mas as operações daqueles trechos ferroviários intermediários, não havendo outras intervenções estratégicas, seguirão sob múltiplas gestões, operações não coordenadas e, muito possivelmente, sem garantia de sincronismo nos planos e programas de investimentos. Ou seja; os bilhões investidos na FIPS poderão resultar em ganhos de eficiência e capacidade aquém do esperado!
A boa notícia é que, querendo, há como ser aperfeiçoado o proposto e ora em Consulta Pública.
Como?
Associando-se plano/projeto mais abrangente, sistemicamente articulado e com soluções para as diversas dimensões do imbróglio (algo que o maior complexo portuário latino-americano está a exigir); com modelo similar ao proposto pela SPA, mas com escopo ampliado; e com processo mais consentâneo com a dimensão de um imbróglio, agora publicamente revelado.
Plano/Projeto:
O ponto de partida do projeto seria a proposta do CAP dos anos 90. Ou seja; excluir-se todos os trechos ferroviários da Baixada do escopo das concessões ferroviárias que operam na região (Rumo, MRS e VLI). Essas passariam a terminar (ou começar?), em princípio, no primeiro pátio de intercâmbio da Baixada Santista.
Todos esses trechos seriam então agregados, incluindo-se: i) a malha interna do Porto Organizado existente (a denominada FIPS na documentação da SPA); ii) a (tão falada) “Ferradura”; e iii) um Centro de Controle Operacional – CCO; ambos a serem implantados. Esse conjunto, consolidado, passaria a ser uma malha única, provisoriamente denominada “Malha Ferroviária da Baixada Santista – MFBS”.
A referência para a estratégia seria, p.ex, o “Chicago Ring”: anel ferroviário da “capital ferroviária dos USA”.
Se concretizada a MFBS o desempenho ferroviário na Baixada e no Porto, despiciendo demonstrar-se, teria ganho expressivo. Isso porque o Complexo Portuário santista tem ao menos duas características, muito peculiares, que certamente seriam beneficiadas por tal arranjo/articulação:
Geograficamente, como legado natural do Estuário, ele é uma “tripa”, com aproximadamente 25 km de extensão, funcionalmente em diretriz ortogonal ao mar; enquanto o Porto Organizado (área interior à Poligonal) se estende por algo da ordem de 12-13km. Ou seja, do pé-da-Serra até ele a carga percorre (“passeia”?) por outros 12-13km do viário (rodo ou ferroviário) no tecido urbano da Região Metropolitana da Baixada Santista – RMBS: daí, até os terminais graneleiros, atualmente os maiores usuários da ferrovia, incidentalmente localizados na entrada (aquaviária) do Porto, tanto na Margem Direita como Esquerda, a carga acaba tendo que percorrer até mais: de 20 a 25 km, como se em uma fila indiana.
Em termos operacionais e de governança, o Sumário Executivo do Plano Mestre vigente (pg. 85) sistematizou a “colcha de retalhos” ferroviária na região em dez trechos/segmentos para análise. E, quando consideradas também as diferentes bitolas (métrica, larga e mista), vias (singela e múltipla), e as concessionárias/administradoras (MRS, Rumo, VLI e Portofer), quase faltam cores na paleta para distingui-los em um mapa; mesmo porque os trechos de cada uma não são contínuos (vide, também, fgs. 50 e 51 do PDZ)!
Modelo:
Para consecução dos seus objetivos e obtenção dos resultados dela esperados, é sabido, a MFBS precisa ter autonomia de gestão; inclusive para articular-se melhor com o mercado financeiro a fim de viabilizar recursos para investimentos. Para tanto, uma SPE tem sido a praxe nas outorgas ferroviárias, portuárias e, mesmo, é o ora proposto pela SPA.
Há várias referências internacionais para tanto; p.ex, Antuérpia ( Bélgica) e Rotterdam (Holanda). Ambos desenvolveram uma estreita articulação porto-ferrovia que até transcende à infraestrutura: abrange operação e serviços.
Rotterdam, especificamente, apresenta duas particularidades que valem ser notadas: i) uma ferrovia de 160 km, dedicada à caga, para ligar o porto à malha ferroviária europeia: a Betuwe Line” (01)(02); e, ii) desde 1992, uma empresa específica para gerir a interface porto-ferrovia: a “Rail Service Center Rotterdam – RSC”; uma boa inspiração!
Vislumbram-se duas alternativas básicas para a outorga da MFBS: i) por meio de leilão, considerando-a uma concessão independente; ou ii) outorga a um tipo de condomínio de outorgados pré-existentes; ferroviários e portuários. Importante lembrar que essas outorgas, em si, já foram objeto de licitações anteriores (concorrência ou leilão).
Na linha do “o olho do dono engorda o gado”, visando redução de interfaces e potenciais tensões e, até mesmo, por celeridade, a alternativa de “SPE condominial” parece ser a mais indicada; como já proposto anteriormente para dragagem e para a própria Autoridade-Administradora Portuária. E agora é o que propõe a SPA para a FIPS. Evidentemente que com compromissos explícitos de investimentos e atuação operacional “neutra” em relação às diversas concessionárias ferroviárias (Rumo, MRS e VLI). Um tipo de “open access”.
Na prática, seria como a ampliação de escopo do modelo recém anunciado pela SPA.
Isso é possível?
Lembre-se que o governo anuncia que o contrato da Portofer não será renovado, desobstruindo-se eventuais amarras para sua redestinação. Os ajustes na malha da Rumo na Baixada não são de grande porte. A VLI não tem malha própria na região. E os ajustes na malha da MRS não poderiam ser objeto de definição nas tratativas, ora em curso, da renovação antecipada de seu contrato de concessão?
Processo:
A elaboração de tal plano/projeto e formulação do modelo não são tarefas simples nem rápidas, dado não serem produtos disponíveis como “de prateleira”. Necessário, pois, serem concebidos e desenvolvidos à la carte; cônscios de ter que enfrentar um imbróglio de grandes dimensões e o enraizamento, até centenário, de relações e instituições. Por essa razão terá que envolver, no processo, múltiplos interesses e atores, privados (concessionários ferroviários, obrigatoriamente) e públicos.
Além disso, como i) o escopo das intervenções passa a ser o Complexo Portuário (e não apenas o Porto Organizado), e ii) as atribuições/competências das autoridades-administradoras portuárias foram sendo atrofiadas no passado recente, a condução dessa empreitada transcende a SPA e demanda intervenção de vários órgãos públicos. Só do Governo Federal, além da SPA, no mínimo o Minfra, ANTT, ANTAQ. Sem contar com a inevitável participação do TCU e, eventualmente, da CGU e MPF. Ainda, dependendo da extensão que lhe vier a ser definida, também do Governo do Estado de SP e das Prefeituras da Baixada Santista.
A se observar, ademais, que a ANTT, a quem cabem legalmente as renovações antecipadas das concessões ferroviais, tem competências próprias e um grau de autonomia, para tanto, bem maior que o da ANTAQ. Inclusive ante o Minfra (comparar art. 25-I da Lei nº 10.233/01, com o Inciso XV do seu art. 27; e Incisos II e III do art. 16 da Lei nº 12.815/13. E, por contraste, com os XXV e XXVIII do art. 27 da primeira).
Por isso, mesmo com o “achado” do art. 28ss da “Lei de Responsabilidade das Estatais” (Lei nº 13.303/16), já incorporado à modelagem da SPA, esse processo ainda requer: i) bastante engenho e arte na sua arquitetura e engenharia; e ii) muita articulação para sua viabilização.
O contraponto a essas dificuldades é saber-se que tanto o plano/projeto como o modelo têm argumentos (SMJ, sólidos!) que apontam para sua razoabilidade; algo plausível e de compreensão acessível mesmo para não especialistas. Isso é essencial, como nos ensinam doutrinadores, para que o modelo possa ser legitimado. E, daí, para que sua legalidade seja formulada e aceita também por órgãos de regulação e controle que, atualmente, indireta ou diretamente, participam até ativamente do processo decisório ferroviário e portuário. Aliás, em alguns casos até influenciam nas próprias políticas públicas!
Enfim, ter-se um modelo que enfeixe razoabilidade, legitimidade e legalidade é um objetivo possível, mas que precisa ser construído e demonstrado.
A estratégia para tanto é clássica: o ponto de partida precisa/deve ser a consciência das ameaças (agora claras) e dos potenciais benefícios estratégicos para cada parte envolvida (um ganha-ganha!). Também a disposição de se aproveitar essa oportunidade, ímpar, que a renovação da MRS e a rescisão antecipada do contrato da Portofer oferecem. E, daí, a busca do envolvimento e comprometimento de todos os diversos atores, públicos e privados, para enfrentar-se as ameaças e aproveitar-se as oportunidades.
Para uma ameaça e um desafio coletivos, só uma empreitada também coletiva (na contramão do “espírito TUPista” que parece vem ganhando força no passado recente).
Natal tornou-se caracterizado por presentes. Mas o principal a celebrar é a possibilidade de renovo trazida por Jesus: não apenas de fazer de novo, ou de criar coisas novas mas, como nos informa Apocalipse (em epígrafe), também de transformar o que existia e se tornou obsoleto: que boa nova!
Com essa esperança celebremos esse Natal pandêmico. E com a perspectiva de reinvenção, de “re-engenheirar” as ferrovias da Baixada adentremos o 2021 que se avizinha.