Frederico Bussinger
“Tá lá o corpo estendido no chão…”
[João Bosco – “De frente pro crime”]
“Para todo problema complexo
existe sempre uma solução simples,
elegante, plausível e completamente errada”
(H. L. Mencken)
Falta de energia elétrica vai se tornando rotina em São Paulo: cada vez mais frequentes, prolongadas e abrangentes. Esse aparente novo-normal até nos torna insensíveis ao noticiário. Mas quando, p.ex, apagões atingem a mais famosa esquina da metrópole (avenidas Ipiranga X São João), seu internacionalmente conhecido centro de comércio e turismo (Rua 25 de Março), os icônicos edifícios Copan e Itália, e a Santa Casa fica mais de 24 horas precariamente funcionando com geradores; não dá mais para tergiversar!
Rádios e TVs divulgam dramas humanos perturbadores; clamores desesperados dos comerciantes; e um “salve-se-quem-puder” na busca de alternativas. Prejuízos econômico-financeiros? Nem podem ainda ser contabilizados. A propósito: qual a estimativa de impacto desses apagões no PIB da metrópole neste 2024? Se tomarmos as decisões corretas, quantos anos serão necessários para que São Paulo tenha um serviço “razoável”; compatível com uma metrópole global?
Pessoalmente tocado, resolvi dedicar um tempo para sistematizar o noticiário, ler notícias mais analíticas e comunicados oficiais, e ouvir entrevistas de “especialistas”. E, principalmente, conversar com colegas de trabalho remanescentes da antiga Light (“avó” da Enel; onde comecei como estagiário no início dos anos 1970), da turma da eletricidade da Poli-USP/73, e da “comunidade de manutenção”, muitos dos quais também pioneiros da hoje pujante ABRAMAN.
Nas explicações uma unanimidade: falta investimentos! Duas outras causas primárias são apontadas: 1) Os mais afeitos ao setor e à concessionária dizem que lhe falta capacidade para atuação em situações de emergência (limitações de equipamentos, materiais e trabalhadores; insuficientes após sucessivos enxugamentos): a incidência de falhas e os elevados tempos para restabelecimento dos serviços não deixam margem a dúvidas. E 2) falta de fiscalização: o noticiário fornece indícios robustos para tanto.
Já como explicação para essas causas primárias, alguns cravam advirem da própria opção pelo modelo desestatizado: vale discuti-lo; apesar de que apagões também existiram e existem sob empresas e gestões estatais. Outros lembram que “imensos subsídios (sociais e energias alternativas) embutidos nas tarifas, e centralização e padronização da regulação pela ANEEL” tanto reduzem a flexibilidade e a autonomia do órgão local de fiscalização como, sem contrapartidas exógenas, drenam recursos que poderiam ser usados na manutenção e expansão das redes. Aliás, também os drenariam os conhecidos “gatos” (ligações clandestinas), tema mais de segurança pública que, em algumas regiões do País, chegaria a 40%!
Como agravante (ou álibi?) também são citados: 1) o crescimento acelerado da demanda/consumo, resultante da proliferação de ar-condicionados e dos eletrônicos da vida moderna; 2) a nojeira do emaranhado de fios de telefonia e fibra ótica nos postes (inclusive sem uso e abandonados), que dificultaria intervenções das turmas de manutenção, principalmente nas redes de baixa tensão (bola dividida entre diversos órgãos de fiscalização e de controle); 3) as árvores que, nesse caso, passam a vilãs (bola dividida entre concessionária e Prefeitura); e 4) as onipresentes “mudanças climáticas”, explicação sempre no bolso do colete para problemas diversos.
Da parte das concessionárias e das autoridades, chama atenção as pouco elucidativas explicações, o bate-cabeça (como entre Enel e Sabesp – saneamento), e a imprevisibilidade de soluções e cronogramas: há algumas de “cabo de esquadra”, como se dizia antigamente. Por muito menos, quando o álibi da falta de geração tornou-se insustentável com a chegada das grandes hidrelétricas, a partir de Furnas (1958) e Eletrobras (1962), técnicos e dirigentes da Light eram demitidos. E olha que a canadense Light também visava lucro, da mesma forma que a italiana Enel (lucro global de € 3,44 bilhões em 2023; R$ 1,3 bilhão só em São Paulo): e como!
Essas manifestações, porém, têm seu lado positivo: são reveladoras e subsídios importantes para estratégias de solução desse imbróglio.
Mostram, desde logo que o tema é multifacetado e complexo: cada um daqueles aspectos/variáveis certamente tem o seu quinhão de responsabilidade; em maior ou menor grau. Mas revelam, também, uma lacuna nesse caleidoscópio analítico; sobre o que pouco se tem falado: falta de engenharia; particularmente de engenharia de manutenção. Faltaria engenharia na concessionária (deve faltar engenheiros também); na fiscalização e regulação, nos órgãos públicos e nos governos.
O silêncio das entidades e conselhos de engenharia é, pois, inexplicável!
Técnicas e cultura de manutenção sempre foram desafios no Brasil; tradicionalmente valorizando mais as obras e inaugurações. Mas não pode deixar de ser lembrado que ao final do Século XX, p.ex, nas análises de confiabilidade para identificação de tendências já eram adotadas “médias móveis” (popularizadas durante a recente pandemia de Covid). No lugar da “predativa” (ironia da época), a manutenção preventiva já era amplamente utilizada; da mesma forma como análises de “custo do ciclo de vida” (ao invés do mero custo de aquisição/investimento inicial). Garantia de qualidade ampliara a tradicional abordagem de controle de qualidade. Será que, depois de tantos avanços, estamos assistindo a regressões neste Século XXI?
As dimensões econômico-financeira, jurídica e ambiental; os instrumentos de fiscalização e controle, etc., que progressivamente ganharam protagonismo nos processos decisórios dos últimos tempos, são, sim, muito importantes. Mas engenharia precisa voltar ao primeiro plano: os apagões paulistanos, mais frequentes, prolongados e abrangentes, inescapavelmente o indicam…
… e, talvez, indique também que, irônica e metaforicamente, a luz não brilhe nas ideias, estratégias, regulação e governança do sistema de fornecimento de energia elétrica de São Paulo!?