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Porto de São Sebastião numa encruzilhada (*)

[Periscópio nº 2502]


Frederico Bussinger

A Comissão de Viação e Transportes – CVT da Câmara dos Deputados realizou, no último 27/MAI, audiência pública – AP para discutir o futuro do Porto de São Sebastião – PSS; iniciativa do Dep. Kiko Celeguim.

Vale destacar do requerimento que ensejou a AP: “…o PSS se configura hoje como uma das mais promissoras áreas portuárias do país, uma vez que é o único porto do Brasil que conta com um calado de 25m de profundidade, o que permite expandir suas operações para receber grandes navios, além de contar com a recente expansão da Rod. Tamoios, que teve sua obra de duplicação concluída em 2024, … é de extrema importância esta comissão … discutir o projeto de arrendamento”.

No essencial, o deputado foi cirúrgico. E sua justificativa, visando ampliar a discussão para além dos ritos normativos (consulta e audiência pública, “contribuições”, relatórios, etc), sem desmerecê-la de forma alguma, ecoa constatações, diagnósticos e propostas de há muito conhecidas. Vale resgatar, como exemplo, dois deles sobre seus atributos náuticos: i) “Não se pode desejar melhor nem mais tranqüilo ancoradouro que o canal de São Sebastião. Rodeado por terras muito elevadas os navios aí estão como em um tanque” (Cosmógrafo português Manuel Pimentel – 1710); ii) “… e dá bom surgidouro às embarcações por seu fundo vasoso, … e puderem sair a toda hora, tanto pela entrada do norte como pela do sul…” (sic) (J.C.R. Milliet de Saint-Adolphe – “Dicionário Geográfico, Histórico e Descritivo do Imperio do Brasil” – 1845).

Também uma conclusão sobre sua vocação logística: “O Porto de São Sebastião atende a todas as condições para ser um porto de excelência, pois conta com um canal largo e profundo, protegido da ação violenta do mar, acessível tanto do lado oceânico quanto terrestre, com capacidade para abrigar navios de grande tonelagem… Estas vantagens naturais são encontradas em poucos pontos do globo e somente neste local em todo o litoral leste da América Latina. Possibilita a implantação de um grande centro de redespacho (“transhipment”) que poderá servir a toda a Costa Atlântica da América do Sul”. (Estudo da Brasconsult – 1972). Ou seja, um porto concentrador (“hub”), para alimentar portos que só podem operar navios de menor porte, ou têm menor demanda: portos “feeder”.

Assim, o Canal de São Sebastião, e a região, para além de um “ativo ambiental” importante, é também um “ativo portuário” singular. Não apenas brasileiro, mas planetário; virtudes que a Petrobras vem competente e sustentavelmente fazendo uso desde a década de 1960: no seu terminal, o  TEBAR, são operados navios petroleiros de até 300.000 t, pouco mais do dobro dos maiores navios conteneiros que devem passar a frequentar a costa brasileira doravante: 366m X ± 15.000 TEUs.

Registre-se que o processo em curso, objeto da AP/CVT, é apenas mais um das idas-e-vindas dos últimos anos: o PSS, inicialmente, foi qualificado (como um todo) para desestatização, no âmbito do PPI, pelo Decreto nº 9.972/19; encaminhamento (concessão) ratificado com sua inclusão no PND pelo Decreto nº 10.894/21. Já no atual governo, tal qualificação (PPI) e inclusão (PND) foram revogadas pelo Decreto nº 11.909/2024. Ato contínuo, parte da sua área foi re-qualificada, agora para arrendamento (convencional): o denominado terminal SSB-01. Confuso? Complexo? Sim; até para os mais afeitos ao ambiente portuário!

Nesse período foram realizadas duas audiências públicas formais para apresentação e discussão da modelagem para a outorga; modelos distintos (aliás, bem distintos!): uma em 7/FEV/22 (após suspensão judicial da convocação, e posterior revogação) e, já no atual governo, outra em 18/NOV/24. As diferenças são tão significativas que o tão propalado “planejamento de estado”, neste caso, parece apenas uma miragem!

Além delas, a OAB/São Sebastião promoveu um webinar em 30/SET/20 (durante a pandemia), no rastro da qualificação inicial do PPI, e ainda antes de se conhecer a modelagem proposta: talvez tenha sido a mais concorrida e, ao longo de 2h34, com os mais ricos debates.

 

O que está na mesa?

Na AP/2022, o modelo apresentado, concessão, previa outorga do porto como um todo (cerca de 400 mil m2); com liberdade bastante ampla para o concessionário, abrangendo investimentos a serem feitos (p.ex, Cláusula-19 da Minuta de Contrato) e, até mesmo, decisões estratégicas que tangenciavam definições de política pública.

Na recente AP/2024, já durante a atual gestão federal, o modelo apresentado foi de arrendamento (diferente de concessão!) de um subconjunto de áreas do PSS (cerca de 91 mil m2, inicialmente, expansível até 262 m2, ao longo de 6 anos). Entretanto, desta feita, com destinações e ocupações claramente definidas: barrilha, coque, açúcar a granel, açúcar ensacado, e “silos” (sem especificação). Na prática, um porto graneleiro; o que, SMJ, contraria o  Decreto nº 11.909/2024, decreto que re-qualificou o SSB-01: seu art. 1º é explícito quanto à destinação do arrendamento: “…para fins de movimentação de carga geral”. Como “carga geral” é um conceito/termo específico, diferente de “carga em geral” (que poderia ser interpretado como contemplando graneis), será que o decreto será revisto?

Ambos os modelos foram bastante criticados nas respectivas APs. A começar por razões curiosamente opostas: o de 2022 pela grande flexibilidade (praticamente um “cheque em branco”, como se dizia à época; algo como um “chapéu na cadeira” do “ativo portuário”, por pelo menos 25 anos, para ser usado se e quando fosse de conveniência do concessionário). Já o de 2024, inversamente, pela falta de flexibilidade (espaços já previamente definidos para as cargas especificadas).

Entretanto os dois modelos também foram criticados por razões comuns: i) não garantia explícita de presença/atuação dos atuais operadores e trabalhadores no futuro do Porto; ii) não previsão (ou, até, inviabilização) de um competitivo terminal multipropósito (contêineres e veículos, em especial).

Durante a AP/CVT, o representante dos operadores, invocando riscos à sobrevivência dos atuais operadores e trabalhadores, à receita tributária municipal e, mesmo, à cadeia logística hoje em funcionamento, apresentou proposta que visaria mitigar os riscos apontados: uma variante de zoneamento, e outorga a mais de um arrendatário (não monopólio). Mas, também, introduziu uma variável nova nas discussões correntes: trazendo à baila o precedente do Tunel Santos-Guarujá (a ser implantado com 50% do CAPEX proveniente de recursos federais e 50% do GESP, conforme recentemente anunciado), propôs aporte de investimentos públicos na expansão do PSS. Tais propostas foram apoiadas pelo representante da Prefeitura Municipal em sua intervenção.

Três curiosidades sobre os 3 modelos apresentados nas recentes Audiências Públicas:

i) Navios graneleiros, para as cargas explicitadas nos modelos propostos, não requerem profundidades de 25m (virtude do sítio portuário do PSS, unânime e reiteradamente lembrada nas APs!). Nem de 20, 18 ou 15m.

ii) Todas as propostas consideram apenas a área existente no Porto (cerca de 400 mil m2): não incluem nem mesmo a limitada expansão prevista no Plano Mestre (pg. 36-37), nem no PDZ (pg. 19 a 22); da ordem de 500.000 m2. Afinal, quem define a estratégia de desenvolvimento de um porto? A modelagem licitatória ou os planos oficiais (Plano Mestre e PDZ)? A Portaria nº 61/2020 já não é mais a norma que “Estabelece as diretrizes para a elaboração e revisão dos instrumentos de planejamento do setor portuário”? De que adianta ter planos e, na hora de se decidir, não os levar em consideração?

iii) Isso para não se mencionar o “Plano Integrado Porto Cidade – PIPC”, cujo projeto e EIA-RIMA previa um porto de cerca de 1 milhão de m2. Essa expansão, esclareça-se desde logo, não seria feita por aterros (como na área existente) mas, já em 2008, prevendo a utilização da tecnologia dinamarquesa “bubble deck”; hoje amplamente adotada pela engenharia civil em diversos segmentos.

Intrigante tais omissões pelos dois recentes modelos propostos, vez que as duas primeiras fases do PIPC (previstas também pelo Plano Mestre e PDZ) foram, inclusive, objeto de Licença Prévia ambiental, emitida pelo IBAMA, em 2013. É verdade que seu prazo expirou? Sim! Mas imagina-se que o processo de revalidação será menos complexo e mais rápido que para a primeira emissão da LP inicial; não parece?

 

Contextualizando a discussão:

Mas essas não são as únicas curiosidades e pontos de atenção nessa análise; nesse debate. Em se analisando o PSS no contexto portuário e logístico paulista e brasileiro, como explicar; p.ex:

  • Que, enquanto brande-se a existência de “restrição de capacidade portuária para contêineres” em Santos/Sudeste, com matérias periódicas nas páginas da grande imprensa e canais especializados, dificulta-se (praticamente inviabiliza-se!) a implantação de um terminal competitivo no PSS?
  • Que, enquanto os demais portos do Sudeste lutam para ter acessos aquaviários com profundidades acima de 15m, despreza-se a possibilidade de uso de profundidade (natural) de 25 metros; vocacionada para navios de grande porte?
  • Que, no discurso, defende-se concorrência, enquanto que, na prática, “aposta-se” solucionar tal “restrição de capacidade” (apenas) via ampliação da capacidade em Santos (Tecon-10; ex-STS-10)? E, ainda, com modelagem apresentando fragilidades e gerando polêmicas?

Na AP/2024 apenas um dos intervenientes não questionou a ausência de contêineres/terminal multiuso na modelagem. A resposta da mesa se repetia: “Não foi encontrada demanda por contêineres…”. Como não? i) Se contêineres já foram movimentados no Porto na década de 1990, mesmo sem equipamentos especializados? ii) Se nos minuciosos estudos de mercado (2008), feitos tanto pelo conceituado ILOS, como a global “Hamburg Port Consulting – HPC, foram identificadas demandas de cerca de 500.000 TEUs (Ano-12) e 900.000 TEUs (Ano-25) do projeto de expansão? iii) Se o Plano Mestre (2018), referência formal para planejamento dos complexos portuários, projeta 1,0 milhão TEUS e 372.000 veículos para o horizonte de 40 anos? iv) Se, diante do quadro atual, todas essas projeções podem, até, estar subavaliadas?

Ah! Um detalhe da maior importância: em sendo um “hub” (de contêineres e veículos, p.ex), como o é, funcionalmente, Algeciras (para o Mediterrâneo – um bom benchmarking para PSS!) e Cingapura (para a Ásia), a maior parte da carga sai de um navio e entra em outro; apenas transitando pelo terminal. Ou seja, o trânsito rodoviário/terrestre, gerado por tais movimentações, se existe, é marginal.

Mas São Sebastião é mais que uma privilegiada alternativa portuária. É uma alternativa logística (e ambiental) para a economia paulista e dos estados fronteiriços: a carga de/para o Porto do rico Vale do Paraíba (100 km) e interior paulista (250km para Campinas, via Rod. D. Pedro; praticamente a mesma distância de Santos) deixam de ter de cruzar a Região Metropolitana de São Paulo. Dito de outra forma, os “hinterlands” do Porto de Santos e do PSS têm uma enorme área em comum: talvez, até, a maior parte delas!

Ah! Benefício logístico e ambiental para a Metrópole e o interior do Estado, sem, contudo, onerar o trânsito urbano de São Sebastião: para além da duplicação da Rodovia dos Tamoios, o novo Contorno teve seu final (ou início?) projetado justamente para ser na entrada do Porto.

Em paralelo com o PIPC, a partir de protocolo firmado entre GESP e a Prefeitura de SJC (Processo SEP-0363/2009), foi analisada viabilidade e especificações da “Plataforma Logística de São José dos Campos”, na confluência de 4 das 10 melhores rodovias brasileiras, uma ferrovia (MRS) e um aeroporto. O relatório do Grupo Executivo foi apresentado em MAI/2010, concluindo por sua viabilidade e indicando duas grandes áreas propícias para sua instalação.

 

E então?

Esse breve histórico demonstra que não é por falta de dados, informações, análises, estudos, ideias ou planos que o PSS segue com crescimentos “vegetativos” de movimentação; marcando passo e “sentado eternamente em berço esplêndido”. Ironicamente bem junto a um privilegiado “ativo portuário”!

Nesse momento, em que as oportunidades parecem superar as ameaças, é preciso romper o impasse entre os “de casa” X “invasores”: há como se compatibilizar os interesses dos granéis tradicionais, atuais operadores e trabalhadores, com investidores/operadores que possam desenvolver o Porto para oferecer uma (real) alternativa, ambientalmente sustentável, para a logística de contêineres, veículos e cargas de projeto para SP e para o Brasil. E isso já foi demonstrado pelo PIPC há 15 anos; também, mais recentemente, pelo próprio Plano Mestre e PDZ, documentos formais de planejamento.

A AP/CVT, bem como as anteriores, indicam que há uma discussão mais profunda que precisa voltar a ser feita. Uma discussão que há que transcender às “contribuições, subsídios e sugestões para o aprimoramento dos documentos técnicos e jurídicos” da tímida modelagem apresentada na AP/2024. Uma modelagem quase paroquial!

De forma mais popular, o PSS precisa definir “o que ele quer ser quando crescer”; discussão que requer uma visão nacional, e que é muito menos de modelagem (a cargo da Infra S/A e Antaq) que de estratégia; de política pública. Portanto, definição que precisa ser articulada com prefeituras e GESP, mas que essencialmente cabe ao MPOR, no âmbito do “Planejamento Integrado de Transportes – PIT” (Decreto nº 12.022/2024, art. 3º, 10, 11, 14, 16 e 18, em particular).

É compreensível que o Porto de Santos, pelo que é e pelo que pode vir a ser, mereça a maior parte da atenção, do tempo e do esforço das autoridades federais e estaduais. Pelo potencial do que pode vir a ser, todavia, o PSS merece e precisa ser trazido à ribalta portuária brasileira.

Ou seja; “a goiaba está caindo de madura”. Oportunidade única para um projeto paradigmático para a logística e a sustentabilidade do Século XXI.

(*) Artigo baseado na intervenção do ator na AP/CVT

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