A desordem urbana não é assunto novo. Caracteriza muitas das megacidades dos países em desenvolvimento como resultante da falta de planejamento.
É a tônica de diversas Cidade mundo afora: Cairo, Luanda, Cidade do México, Johanesburgo, diversas cidades da China, além de outras tantas brasileiras como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife. Em comum, apresentam os mesmos nossos velhos conhecidos problemas de insuficiência de transporte coletivo, moradia, trânsito caótico, desemprego, poluição, criminalidade.
A desorganização urbana em expansão, lamentavelmente, toma a paisagem física do território acumulando lixo nas ruas, comércio irregular, caçambas, falta de iluminação, supressão de parques e áreas arborizadas em meio a calçadas quebradas ou inexistentes.
De modo subjacente, o território passa a ser tomado por um amálgama social difuso no qual se misturam funções sociais ao crescente contingente do povo da rua, à mendicidade, usuários de droga, flanelinhas, andarilhos, até mesmo famílias inteiras que, premidas pelas circunstâncias, passam a morar nas ruas.
Assim se vai perdendo a noção do que é público e do que é privado, misturando usos e costumes, afrouxando o conceito de cidadania, esgarçando o que configura a dignidade da pessoa, numa sociedade confusa que relativiza conceitos, que confunde mais do que esclarece, que odeia o diferente, que não luta mais pelos direitos coletivos e, que cada vez mais, aceita a desigualdade social como fatalidade, preguiça ou curso natural das agruras da vida.
Chegou-se à desorganização das megacidades por meio de diversas causas. Aqui, nosso foco não é aprofundá-las, lembramos as mais imediatas: a desorganização do trabalho e a ausência dos poderes públicos, como influência direta na deterioração da paisagem urbana.
Esta segunda nos remete ao conceito de “janelas quebradas”, cunhado por Wilson e George Kelling, em 1982. Resumindo, dizem os autores que, se uma janela quebra em um edifico, deve ser imediatamente consertada. Caso contrário, da forma como está sem conserto, rapidamente se incorpora à paisagem, fazendo com que os moradores se habituem a isso. Com o passar do tempo, aquela janela quebrada passa a ideia de abandono, podendo se tornar um incentivo à depredação daquele e de outros locais no entorno.
Embora o conceito seja mais utilizado pelos especialistas em segurança pública, extrapolamos aqui a teoria para aplicá-la à organização urbana como um todo.
Não só as janelas, mas os vários desmandos urbanos já mencionados, se mantidos como estão, aos poucos se avolumam e se incorporam à paisagem. E as pessoas vão se acostumando a essas situações, passando a achar que tudo isso é normal. Uma miopia coletiva que acaba por reduzir o grau de percepção para novas formas de deterioração, sejam físicas, sejam sociais.
Particularmente, nos chama a atenção a proliferação de moradias empilhadas nas franjas das cidades. Formada por casas sem planejamento, com construções precárias e de risco, essas moradias vão se avolumando e tomando conta da periferia das grandes cidades. De igual modo, se avolumam as precárias ocupações de prédios nas áreas centrais.
Essas condições de moradia denunciam o crescente desinteresse do poder público e a falência na tentativa de dar solução ao déficit habitacional. Sem dúvida, o direito à moradia está entre os direitos fundamentais do cidadão.
Mas, morar assim significa ter a condição de vida bastante precarizada. Paga-se relativamente caro por esses espaços. Aluguel de “laje” raramente custa menos do que R$ 400,00. Tampouco um cômodo em edifícios compartilhados tem custo menor.
Afora o custo, faltam condições básicas de urbanização. Falta saneamento básico, arruamento, água, luz, espaços de lazer, privacidade e espaço vital. Se os antigos “barracos” construídos em madeira davam a sensação de transitoriedade, as lajes empilhadas perenizam a precariedade. O resultado dessa desorganização e seus impactos serão colhidos mais à frente. Não se pode calcular ainda seus efeitos sobre os aspectos psicológicos, sociais e emocionais das pessoas.
Em paralelo, assistimos à verticalização das demais áreas das nossas Cidades. A oferta de imóveis que se espalha por todas as localidades quer nos fazer crer que a população urbana cresceu espantosamente. (sic!). Proliferam edifícios. Construtores se valem do espaço público para instalar seus canteiros de obras com betoneiras e bate-estacas no meio das ruas, causando desordem e transtorno. Fecham ruas, deixam buracos e remendos no já precário afastamento das Cidades. Tudo isso sob o olhar desatento e a leniência da fiscalização e em afronta a planos diretores.
Muitas dessas edificações já incorporaram novas formas de usos compartilhados, já adaptados aos novos conceitos de moradia e serviços, mesclando residência e coworking, desafiando conceitos urbanísticos e aqueles que tardam a compreender a modernidade.
Em meio a tudo isso sucumbe a história das Cidades. Perdemos nossa memória urbana que se vai demolindo junto com os casarões históricos. Desaparecem casas e casinhas de bairros tradicionais, conjuntos arquitetônicos de bairros que abrigaram migrantes e imigrantes em locais turísticos, num amálgama de concreto e gente que se aglomera, num convívio espacial e socialmente desigual.
São diferentes desordens que se avolumam na periferia, centro e áreas nobres, numa desorganização que se impregna, repete e aprofunda, tal como tatuagem que indelevelmente vai se apegando à tecitura urbana, alterando a estrutura social.
Já se foi a primeira noite e já levaram uma flor. E não falamos nada. Voltaram na segunda, na terceira, na quarta e em outras noites sucessivas, roubam nossos jardins e destruíram nossas casas. Nada falamos. Não defendemos o território. Tampouco o espaço de convívio cidadão. Até que um dia nada mais teremos a falar…