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Água, chuvas, enchentes: Lições aprendidas… e a aprender

[Periscópio nº 2404]


Frederico Bussinger

“Se tens que lidar com água,
consulta primeiro a experiência, depois a razão”
[Leonardo Da Vinci]

“As coisas estão no mundo,
só que eu preciso aprender…”
[Paulinho da Viola]

“A lição sabemos de cor,
só nos resta aprender”
[Beto Guedes]

 

Herr Blumenau (na verdade, Hermann Bruno Otto Blumenau), alemão, implantou no vale do Rio Itajaí-Açu-SC uma colônia em meados do Século XIX. Esta veio a ser hoje a conhecida, próspera e hospitaleira cidade que leva seu nome.

Consta que, ao se preparar para a viagem de imigração, lembraram-lhe que os índios xoclengues, habitantes da região escolhida, “eram muito violentos”. Aliás, o que também ouvira em viagem precursora, quatro anos antes.

Desembarcou em Itajaí com 16 outros colonos compatriotas. Subiu o rio com todo o cuidado; tomado também ao chegar naquele 2/SET/1850 à foz do Ribeirão Garcia, seu afluente, hoje centro histórico da Cidade.

Afastado dos assentamentos indígenas o local lhe pareceu seguro. Dividiu a gleba entre eles. Edificaram. Plantaram. Colheram.

Passado um tempo, como os “indígenas violentos” não deram o ar da graça, tomaram a iniciativa e resolveram fazer uma aproximação. O cacique os recebeu, em princípio desconfiado, mas sem hostilidades.

Com muito jeito, Herr começou falando das vicissitudes na Europa naqueles tempos; das razões de migração para o Brasil; do “mal jeito” de terem se fixado “nas terras de vocês”…. e tal e coisa. Espantou-se quando o cacique o interrompeu: “mas aquelas terras não são nossas!”. Meio sem jeito, ele ousou perguntar: “então de quem são?

– “Das águas”, respondeu o cacique!

A história, daí em diante, é conhecida… e justificada com impressionante regularidade: uma primeira enchente ocorreu logo dois anos depois (29/OUT/1852); algo que não deveria ter sido surpresa para Herr que, em carta à família, em 1848, já mencionara as cheias do Itajaí-Açu.

Desde então, já foram 101 enchentes nos registros desses 172 anos (alguns deles com mais de uma): a cota recorde em 1880; a mais longa em 1911; a de 1983, mais lembrada pela extensão dos sofrimentos e danos, numa Blumenau então já fortemente industrializada. O recorde do Século XXI em 2008, enchente que destruiu berços e forçou a paralização do Porto de Itajaí por longo período; e a de 2023, que provocou a suspensão da tradicional Oktoberfest pela primeira vez em seus 39 anos.

De igual modo, os registros de Porto Alegre dão conta de 12 principais cheias em 150 anos: 1873, 1914, 1928, 1936, 1967, 1984, 2002, 2015, 2016, 2023, 2024; além da histórica de 1941 (a maior anteriormente), esta vivida por Mario Quintana que a expressou nos versos de “Reminescências”.

Dificilmente o cacique ouvira falar de Da Vinci. Mas é certo que testemunhara inúmeras enchentes na região. Seus antepassados outras centenas ou milhares. Curioso é que Herr, químico e farmacêutico com formação sofisticada, se ouvira falar de Da Vinci, não se convencera da importância de, quando se lida com águas, consultar-se primeiro a experiência.

Dito de forma mais direta: quem quer conviver com águas, tem que “negociar” com ela as condições!

Da Vinci; experiências não faltam!

Além dessa lição básica, só ao longo desses quase dois séculos de desastres registrados em várias regiões do Brasil, é possivel arrolar outras evidências, constatações e experiências que poderiam ser sistematizadas também como lições aprendidas; seguindo recomendação de Paulinho da Viola e Beto Guedes:

  • Planos, projetos, obras são importantes; mas manutenção também: aliás, ela é imprescindível! P.ex: ter um sistema de proteção com 68 km de diques, projetado para cheias de até 6 metros, como o de Porto Alegre, mas que, na hora-H se rompe (ainda abaixo dos 5 m); bombas que não funcionam, inexistência de fonte emergencial de energia, ou, pasmem, constatar-se que falta vedação em algumas das 14 comportas (com contato ferro-ferro há vazamento!), é inaceitável! Não? OBS: no início desta década houve grande polêmica entre os que propunham e os contrários à derrubada de parte dessa estrutura, o “Muro da Mauá”.
  • De igual forma, planos de contingência: não há espaço para improvisações quando a catástrofe já é uma realidade, quando o caos já está instalado. Aí, é o que dá para ser feito!
  • Rios assoreados têm menor capacidade de vazão e transbordam de suas calhas com mais facilidade. Claro que devem ser desassoreados periodicamente. Mas, por que não agir, também, preventivamente? P.ex: manter matas ciliares; evitar ocupações de áreas lindeiras e encostas (esta, fonte maior do material que assoreia os rios); etc.
  • Águas densas, com detritos, fluem com mais dificuldade. Se com pneus, colchões, moveis, geladeiras, entulhos de construção, com mais dificuldade ainda.

Ah! Especificamente sobre a catástrofe gaúcha, em curso, já há uma primeira sistematização de dados/informações, elaborada e divulgada pela UFRGS. Visa dar “suporte à decisão”. E, claro, principalmente à ação!

Enfim; os registros e evidências de Blumenau e Porto Alegre (outros também) indicam que as chuvas têm se tornado mais concentradas, o que amplia os impactos. Mas também indicam que temporais, trombas d´água, chuvas prolongadas, inundações sempre existiram. E são até previsíveis. Ué! Não fosse assim, de onde teria vindo a “experiência” do cacique?

Desafios à frente

Não dá, pois, para, professoralmente, limitar-se a responsabilizar a “mãe-natureza” ou o “aquecimento global” (fenômeno tão amplo, complexo e impessoal); mormente se como álibi para inação pontual/local.

Tampouco apenas cobrar dos poderes públicos (prefeituras, governos estaduais e federal) que, claro, têm responsabilidades; seja pela leniência (deixando que façam o que não poderia ser feito), seja por omissão (do que eles deveriam fazer), seja pelo que e como eles decidem e fazem.

A população, a comunidade, a sociedade, que são as primeiras vítimas das catástrofes, também são parte do problema (no mínimo, no tocante às suas consequências). Mas podem, também, ser parte da solução.

Em síntese: antecipação (eventos), prevenção (impactos), minimização (danos), socorro (afetados), restabelecimento (sistêmico); é estratégia que requer planejamento e gestão, muito facilitada com a participação de todas as partes envolvidas: ou seja, nós!

Aliás, consciência e espírito de solidariedade não faltam à maioria do povo brasileiro, de todas as regiões, como o demonstra essa mobilização em apoio ao RS e sua população. Emocionante!

Vale lembrar que a Holanda, com mais de 1/4 do seu território abaixo do nível do mar, onde abriga mais de 60% de sua população, e metade em áreas a menos de 1m acima dele, acumulou experiências e agiu ao longo dos séculos; particularmente a partir da grande catástrofe de 1953,  para conviver com as ressacas do mar, as chuvas intensas e os degelos; por vezes simultaneamente. É inspirador saber que as mundialmente conhecidas flores holandesas, uma pujante indústria, e cerca de 70% do seu PIB são produzidos abaixo do nível do mar; não?

Mesmo as maiores e mais sofisticadas medidas preventivas, todavia, não impedem a ocorrência de catástrofes. E, também nesses casos, há exemplos inspiradores; p.ex: New Orleans (Furacão Katrina, 23/AGO/2005); Japão (Terremoto e Tsunâmi, 11/MAR/2011); e New York (Furacão Sandy, 22/OUT/2012), que se reergueram após tê-las vivido/experimentado há poucos anos atrás.

A par dos resgates e do socorro às vítimas (óbvio, a prioridade-zero), e das primeiras ações para restaurar a rotina das pessoas/famílias, e do funcionamento das cidades e da economia, a reconstrução do RS já está em pauta.

Verbas públicas, claro, são importantes; imprescindíveis. Iniciativas e empreendimentos privados, também. Mas seria frustrante, e um erro histórico, se tantas dezenas de bilhões de R$ vierem a ser usados para simplesmente se reconstruir, da mesma forma, o que havia antes dessa catástrofe gaúcha … sob pena de, indesculpavelmente, negligenciarmos os ensinos do cacique, Paulinho da Viola e, principalmente, de Da Vinci. Várias cidades, p.ex, deverão ter que mudar de localização.

A catástrofe gaúcha, para além de sua dramaticidade, também nos oferece (mais) uma oportunidade (melhor, obrigação!) de transformar a ocupação dos espaços, as infraestruturas, nossas governanças … e a nós mesmos, na esperança/perspectiva de que volte a raiar um “sol de primavera”.

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