Frederico Bussinger
“Não sou eu quem me navega,
quem me navega é o mar…”
[Timoneiro – Paulinho da Viola]
Com séries históricas das últimas 4 décadas já se tornou um clássico o gráfico que sistematiza: i) o PIB (GDP) mundial, ii) o índice OCDE de produção industrial; iii) o do comercio mundial de mercadorias (US$); e iv) do comércio (fluxo físico) marítimo (toneladas). Ele foi concebido pela UNCTAD, que o atualiza, e é reproduzido em inúmeros documentos e publicações mundo afora.
Sua grande contribuição é permitir, de uma visada, a comparação da evolução dessas 4 variáveis que, em conjunto, fornecem informações importantes sobre a economia e a geopolítica mundial; em especial nesse período de grandes transformações.
Nos 15 primeiros anos (1975-90) as curvas crescem praticamente em paralelo. A partir daí começam a se descolar, como se abrindo uma “boca de jacaré”: o PIB passa a crescer mais rápido que a indústria (1/3 em 26 anos); o fluxo marítimo mais que o PIB (30%); e o comercio mundial mais que o fluxo marítimo (1/3): 70% mais que o PIB e 2,26 que a indústria.
Muitos se referem à década de 1980, que antecedeu esse descolamento, como a “Era Thatcher–Reagan”; um período de muitas reformas e grandes transformações (para além das fronteiras do UK e USA). Particularmente na economia e comercio internacionais; período no qual o processo chamado de globalização teve grande impulso: a evolução das variáveis no gráfico da UNCTAD o comprova. Nem mesmo o solavanco da crise de 2008/09 modificou as trajetórias e, até, os patamares.
O crescimento da movimentação de contêineres, não indicado no gráfico, foi ainda mais acentuado: antes desse período girava em torno de 20% da carga geral; hoje é superior a 80%… sobre uma base que já é várias vezes maior!
Dentre tantas reformas do período, a dos portos teve grande impulso nos 5 continentes; seja por iniciativa dos próprios governos locais, seja estimulado pelas agências multilaterais, que passaram a dedicar-lhes setores, equipes, eventos e publicações específicas. O Banco Mundial, p.ex, passou a editar um manual de reformas portuárias; a OIT a desenvolver um amplo programa de capacitação e treinamento (PDP); e a ESPO publica um guia de “Governança Portuária”, baseado em pesquisa periódica: todos na web.
A correlação entre esses processos não é difícil de ser observada: aumento da corrente de comércio, em volume e/ou valor, faz crescer a demanda sobre os portos. E, isso, mais que proporcionalmente; visto que, no comércio internacional, exportações estão em geral vinculadas a importações; ou vice-versa. Ou seja, para além de sistemas econômicos, regimes políticos, idiossincrasias de governantes, composições de parlamentos ou nível de articulação de setores econômicos e sociais, uma razão objetiva se impunha; um “driver” (no jargão atual) a pressionar por aumento de capacidade e de eficiência, e redução de custos portuários e logísticos: competitividade era (e é) palavra de ordem!
O Brasil não esteve no pelotão de frente. Mas essa pressão também passou a ser sentida por aqui: como que tributários que confluem ao rio principal, tímidas e localizadas iniciativas, em curso desde os anos 60, foram tomando corpo de movimento organizado (a energia do processo constituinte deve ter contribuído!?), até que as reformas portuárias brasileiras ganharam a possibilidade de um novo modelo, balizada pela lei de 1993. Ou seja, dizer-se que elas são uma das resultantes, que são filhas legítimas do processo de globalização, anabolizado nos anos 80, não seria nenhuma impropriedade!
Vivemos há mais de um ano sob as dores e as incertezas da pandemia. Incertezas, inclusive, sobre as cadeias de suprimento mundiais, concebidas e desenvolvidas para um mundo cada vez mais globalizado: muito se discute a respeito, sem que ainda haja um consenso.
Por outro lado, o tráfego do Canal de Suez (inaugurado em 1869; 167 km entre os mares Arábico/Vermelho e Mediterrâneo; 19,3 mil trânsitos anuais; 2 mi de barris/dia de petróleo; 8% do gás natural; 1,21 bi toneladas em 2020; 12% do comércio mundial) vem de ficar quase uma semana interrompido, trazendo à baila dúvidas adicionais: i) sobre as condições e normas adequadas para tráfego de navios, cada vez maiores, em canais antigos e, por vezes com via singela; e ii) sobre benefícios e riscos do modelo “just-in-time”.
E não apenas sobre as cadeiras de suprimento que dependem do Suez, mas também daquelas que fazem uso dos demais gargalos do tráfego marítimo internacional. Três principais: i) Estreito de Malaca (passagem marítima natural; 930 km; mais de 100.000 navios/ano; 40% do comércio mundial); ii) Estreito de Ormuz (natural; 167 km; Golfo Pérsico-Golfo de Omã; 1/3 do gás natural e 1/4 do petróleo mundial – 21 mi barris/dia; 20% do transporte marítimo mundial); e iii) Canal do Panamá (aberto em 1914; 80 km entre os oceanos Atlântico e Pacífico; 14 mil trânsitos anuais; 1,25 bi toneladas em 2020; 6% do comércio mundial).
Nos anos 1980/90 os novos padrões de globalização teriam tido forte influência sobre as reformas e modelos portuários; inclusive brasileiros. Ante a pandemia e o recente acidente no Suez, uma questão inevitavelmente se coloca: a perspectiva de um novo superciclo de commodites (que já vem sendo discutido) e de eventuais mudanças nos padrões de globalização e estrutura das cadeias de suprimento poderiam impulsionar novas mudanças no perfil e modelo portuários? O que elas indicariam para as etapas futuras de reformas portuárias brasileiras? Para a nossa logística?
… reflexões que podem ser relevantes quando incidentalmente o governo coloca em consulta pública uma minuta de revisão do Plano Nacional de Logística – PNL; agora com horizonte de 2035.