Frederico Bussinger
“É minha natureza”;
responde o escorpião ao sapo
que picara na travessia do rio.
[Clássica fábula]
A desestatização (privatização) que vem sendo anunciada para etapas futuras das reformas portuárias brasileiras nunca foi uma unanimidade. Aliás, antes e talvez até mesmo sua causa, é a pouca clareza sobre o objeto em questão: i) ora se ouve (até de autoridades!) que trata-se de privatização dos portos (uma impropriedade, vez que as operações portuárias já são 100% privadas no Brasil há mais de 20 anos!); b) ora das “Companhia Docas … e o serviço público portuário” por ela prestado (como é o caso do disposto no decreto autorizativo da Codesa) – ou seja, da empresa; c) ora do “Porto Organizado … e os serviços públicos portuários a este relacionados” (como é o caso dos decretos de Santos e São Sebastião) – ou seja, de um bem público (art. 2º, I da Lei nº 12.815/13); d) ora privatização das autoridades portuárias – ou seja, da função.
Em síntese, há uma missão definida, um objetivo estabelecido, um cronograma anunciado; mas o objeto/escopo ainda está por ser precisado. Há modelagens em curso, e até uma audiência pública (Codesa) já foi realizada: a linha mestra do modelo, porém, ainda não é nítida. E as diferenças entre o veiculado não são banais; certo?
Nos debates, já antigos e recorrentes, há um DNA ideológico: uns entendem que setores/atividades estratégicas devem, sempre, ser conduzidos pelo poder público; outros que defendem uma privatização “ampla, geral e irrestrita” (normalmente os que creem que o setor privado tem o monopólio das virtudes!). Ah! Interesses (corporativos, comerciais, políticos e paroquiais) raramente são explicitados e usados para fundamentar os posicionamentos dos interlocutores: quase sempre o estandarte é a economia do País, o interesse da sociedade, ou o futuro do Brasil!
A novidade das últimas semanas é que também privatistas de raiz começaram a apresentar publicamente suas dúvidas, preocupações e até a fazer críticas quanto ao que já foi apresentado para desestatizações de autoridades portuárias. P.ex:
Em recente matéria, no Estadão de 25/ABR último, o Presidente da Associação Brasileira dos Terminais Portuários – ABTP, comentando os riscos da gestão dos portos ao ser repassada à iniciativa privada, particularmente da negociação de privado com privado para escolha de quem pode implantar e operar um terminal no porto, aponta potencial conflito de interesse “que pode até mesmo inviabilizar a atividade de concorrentes dentro do porto”.
Já o Presidente da Associação dos Terminais Portuários Privados – ATP, falando em webinar, dentre várias “contribuições” para “ajustes” no projeto, revela preocupação que “o modelo de negócios para a Codesa contamine e transborde para os próximos processos”; e que “as tarifas deixem de ser contrapartida de prestação de serviço para se tornarem fonte de receita para o novo concessionário”.
Ué! O problema dos portos não é a interferência dos políticos? O fim das “amarras” de governos não é um sonho de consumo? Liberdade de preço não é um mantra?
Começa-se a perceber a singularidade das autoridades portuárias: elas são essencialmente uma função; não um ativo (ainda que por vezes os possua e os administre): um equívoco nas premissas?
Também que, como “descobriu” a esmagadora maioria dos portos e países mundo afora, autoridades portuárias públicas não só não são incompatíveis com operações e terminais privados, como no exercício de suas funções são até essenciais para a convivência e bom funcionamento do condomínio.