Frederico Bussinger
Aos poucos foi ficando claro, e de domínio público, que as operações no/do Porto de Santos já são 100% privadas desde os anos 1990. Isso por meio de empresas operadoras, arrendatárias e TUPs. E nos portos brasileiros, em geral, há umas 2 décadas.
Não foi fácil furar a barreira do noticiário, dos discursos e narrativas, inclusive de autoridades. Mas hoje, a não ser por hábito ou descuido, é raro ouvir-se falar de desestatização (privatização) do porto “A” ou “B”. Ainda bem; pois permite concentrar-se o foco de análises e discussões sobre o tema.
Mas esse é só um primeiro passo: segue havendo ruídos e nebulosidades sobre conceitos, termos e modelos; algo que a falta de debates sistematizados (tese, antítese e síntese) dificulta a dissipação… enquanto que analogias forçadas e benchmarking descontextualizados o agravam.
A começar pelo básico: a função (essa palavrinha é chave!) de administração tem a ver essencialmente com o que existe e funciona em um porto. Vale dizer; com seus infraestrutura/ativos e serviços condominiais. Portanto, trata-se de gestão.
Já a função de autoridade portuária está voltada às questões estratégicas (muito de função de estado). Ao poder/dever vir a ser: qual a clientela a ser atendida? Qual o “core business”? Com que parceiros se associar? Que investimentos fazer? No que e para onde expandir? E, claro, por que valores se pautar; razão pela qual normalmente inclui-se nesse aspecto o poder de polícia e de arbitramento de conflitos (no/do “shopping center”).
Autonomia, como traço central do DNA das autoridades portuárias, e sua natureza pública, como opção mundialmente preferida, decorrem imediatamente dessa visão. É o que apontam, p.ex, as pesquisas periódicas de “Governança Portuária” feitas pela Associação Europeia de Portos (European Sea Port Organization – ESPO).
Ao longo de mais de 800 anos de cultura “landlordista”, com contribuições dos diversos sistemas econômicos e regimes políticos mundiais, isso está mais ou menos assentado. No Brasil ainda não!
Seja pela síndrome da jabuticaba, seja pelo, digamos, descuido no estabelecimento dos marcos regulatórios essa distinção e, mesmo, conceituação não está clara: p.ex; o art. 2º da Lei dos Portos vigente (Lei 12.815/13) não inclui no rol de suas definições nem administração nem autoridade portuária. Disso resulta ter-se que lidar com conceitos/instrumentos basilares, e de usos correntes, sem que estejam previa e cabalmente definidos!
Só que, no art. 17, § 1º, ao tratar das atribuições/competências, seguindo sem defini-las ou conceitua-las, a Lei sela a fusão: “… administração do porto organizado, denominada autoridade portuária”. Exagero considerar-se que, pela lei-base brasileira, autoridade portuária seria, meramente, como uma marca fantasia (da administração portuária)?
Preciosismo? OK. Que seja! Mas, além desse aperitivo, no prato principal há ingredientes que, há que se reconhecer, dificultam muito a exegese da lei, das normas e, principalmente, o entendimento dos planos governamentais. Dois deles:
i) As funções/atribuições de administração e de autoridade estão distribuídas por 2 dezenas dispositivos; da Lei (1º, 6º-8º, 12, 13, 16, 17-19, 25, 53, 57-59, 71) e do Decreto nº 8.033/13 (e atualizações). E, além do mais, estão mescladas; o que requer uma cuidadosa exegese.
ii) E o mais relevante: sabe-se que o exercício do estratégico em um porto (papel central de uma autoridade portuária) assenta-se sobre 4 pilares: planejar (incluindo investimentos e modelagem); escolher parceiros (empresas e projetos); tarifar e punir. Ao se analisar os marcos regulatórios brasileiros, dá-se conta que nenhuma dessas atribuições está designada à autoridade-administradora de cada porto: pela Lei vigente elas, e diversas outras relevantes, foram re-centralizadas nas instâncias federais a partir de 2012/13: MINFRA e ANTAQ. Sem falar em TCU e MPF.
Ah! E a Europa? Não tem um plano estratégico continental, que equivaleria ao PNL? Sim! Só que ele, o “Ten-T”, é elaborado “bottom-up” (não “top-down”). E com a participação dos estados-membros e de representantes dos diversos modos de transporte. Portanto, diferentemente dos planos nacionais/federais brasileiros, ele está mais para um pacto entre os pares que para uma norma da autoridade-superior.
Ah! E a Portaria nº 574/18 (complementada pela Portaria nº 2.695/19)? Não é descentralizante? Sim! Só que, além de não ser lei, ela delega o fazer, mas não o decidir… que é, justamente, o que caracteriza a autonomia.
Em síntese: a função de autoridade portuária está nominalmente alocada a cada porto do País mas, na prática, o decidir, e a quase totalidade das atribuições que caracterizam tal função, estão previstas e são exercidas por órgãos de Brasília. E, como essa disposição vale em princípio para todos os portos, seria impróprio interpretar-se o modelo brasileiro como tendo uma única autoridade portuária? Uma autoridade nacional/federal?
No início da “Era-PPI” ouvia-se falar em “desestatizar (privatizar) a autoridade portuária”. Aos poucos o objeto foi transitando de autoridade para a administração; enquanto os representantes governamentais passaram progressivamente a frisar que a autoridade seguirá sendo pública: estão corretos! Sim: só que, como prevê a lei vigente, ela é exercida pelo poder público federal. E, ao contrário do modelo anterior (Lei nº 8.630/93), estruturado em instâncias e com processo decisório recursal, agora o é de forma centralizada e terminativa (salvo intervenções do TCU e MPF).
O desejável seria uma revisão do marco regulatório. Mas, mesmo sem alterá-lo, é possível caminhar em direção ao padrão internacional e a um arranjo mais fiel ao “pacto federativo” constitucional brasileiro: descentralizando atribuições e dando autonomia aos portos.
Se isso está sendo cogitado para privados (no processo/modelagem da desestatização), por que não por delegação (art. 2º, X; e art. 6º, § 5º) a autarquias ou empresas públicas locais (inclusive federais, como as Docas)? Tanto pode, que já foi feito para portos de RO e RS, e Paranaguá.