Frederico Bussinger
O modelo Landlord, concebido na Europa há 800 anos, é atualmente adotado por, pelo menos, 4 entre 5 portos do Planeta. No seu sequenciamento genético, autonomia é o elemento central: autonomia não apenas para executar mas, principalmente, para planejar e decidir (o que não conflita com macro-planejamentos como o “White Paper e TEN-T” europeu). Disso decorre, como corolário, um processo decisório descentralizado com, na maioria dos casos, arranjos institucionalizados para participação dos atores envolvidos (stakeholders; partes interessadas).
Ele nunca chegou a ser exatamente implantado no Brasil. Mas chegamos próximo com o modelo balizado pela Lei nº 8.630/93 (Lei dos Portos): definir planos diretores, modelar e conduzir processos licitatórios, firmar contratos com os parceiros e/ou aditá-los, homologar projetos e aprovar investimentos, autorizar prestadores de serviço, fiscalizar operações e imputar penalidades (quando o caso), fixar e revisar tarifas, p.ex, nele eram atribuições de um esquema de governança local (Cap. VI). Esta governança se assentava sobre: i) um colegiado, misto de “parlamento” e, em certa medida, “tribunal de justiça” (o CAP – art. 30); e ii) um órgão executivo (a Autoridade-Administradora – art. 33ss), atuando “de forma integrada e harmônica” com 5 outras autoridades locais (at. 3º).
No tocante ao “Porto Organizado”, cabia ao “ministério competente” (no caso o de Transportes, antecessor do atual MINFRA): i) indicar um e formalizar a indicação de todos os membros do CAP (feitas por vários segmentos – art. 31); e ii) exercer função recursal de 2ª instância (§ 2° do art. 5º): a 1ª era o CAP. A se observar que a figura de “porto organizado”, da época, equivale ao que hoje se denomina “complexo portuário” em vários portos (Santos, Itajaí; p.ex); visto que poligonais vêm sendo reduzidas.
Tal modelo e esses novos marcos regulatórios foram todos definidos pela então Lei dos Portos (Lei nº 8.630/93) que, também, no todo ou em parte, revogara nada menos que 18 diplomas legais e normativos (art. 75 e 76). Assim, como estrela solitária, ela passara a nortear a vida portuária brasileira.
Mas isso durou pouco mais de um ano: em JUN/94 entrou em cena o Plano Real (MP nº 542/94). Seu objetivo era “domar a inflação” que chegara a dois dígitos % … ao mês! Mas em seu bojo atribuiu “reajuste e revisão dos preços e tarifas de serviços públicos” a “atos, normas e critérios” do Ministério da Fazenda (art. 47). A MP foi aprovada um ano depois (Lei nº 9.069/95) e a inflação se estabilizou (atualmente gira a um dígito %… agora ao ano). Mas o sucessor da Fazenda, o Ministério da Economia, segue sendo parte das decisões de tarifas portuárias até hoje.
No ano seguinte (Dec. nº 1.990/96) as Cias Docas passaram a integrar o Programa Nacional de Desestatização – PND (movimento similar ao que atualmente se intenta). Talvez por falta de clareza, à época, na prática foram os arrendamentos que passaram a ser supervisionados pelo CND; enquanto o BNDES a participar das suas modelagens. O decreto foi revogado 12 anos depois (Dec. 6.413/08), mas o BNDES não apenas segue como atualmente concentra as modelagens de arrendamentos e desestatizações mais relevantes.
Século XXI:
Em 2008, já com a Secretaria de Portos – SEP implantada (MP-369, Lei nº 11.518/07), foi baixado o Dec. nº 6.620. Seu objetivo formal era o “desenvolvimento e fomento do setor de portos e terminais portuários”; enquanto o político-administrativo era “resolver o conflito carga própria X carga de 3º”. Entretanto, pelo seu abrangente e minucioso conteúdo foi por muitos considerado uma “Nova Lei dos Portos”: alterava particularmente o processo decisório do setor; concentrando-o nos órgãos federais.
Difícil recordar-se de expressivos desenvolvimentos da época. Tampouco as discussões de carga própria X carga de 3º chegaram a ser pacificadas ou o conflito resolvido: ao contrário, foram levados ao TCU e, em meados de 2012, o prognóstico para os 4 TUPs, em questão, era adverso. Não é clara a conexão; mas o certo é que, a partir daí, o tratamento da questão de carga própria X carga de 3º tomou outro rumo, até vir a ser eliminada a própria causa: a lei de 1993 foi revogada e, com ela, também o decreto. A centralização do processo decisório, que o Dec. nº 6.620 introduzira, todavia, foi transferida à MP-595 (que o concentrou ainda um pouco mais). E, desta, à Lei nº 12.815/13 (Lei dos Portos atualmente vigente); coadjuvada pela Lei do PPI (Lei nº 13.334/16).
No arranjo resultante quase todas as funções estratégicas, originalmente na órbita da governança local, foram centralizadas na SEP e ANTAQ: o CAP passou a ser consultivo, e às administrações portuárias restaram duas dezenas de funções de natureza essencialmente executivas/administrativas (art. 17 a 19, e 25 da Lei). E sempre dentro de normas explicitamente estabelecidas pelo poder concedente (SEP; hoje SNPTA/MINFRA) ou demais autoridades.
Interessante observar que a MP-595 foi anunciada, naquele 6/DEZ/2012, como “Programa de Investimentos em Logística para Portos” (https://www.youtube.com/watch?v=QPWX0_3hcaU). Inclusive com metas até 2017: R$ 54,2 bi em concessões, arrendamentos e TUPs; ii) R$ 6,4bi em acessos; e iii) R$ 3,8 bi em dragagem. Das metas foram efetivamente realizados investimentos de R$ 0,46 bi no período; ritmo acelerado com a criação do PPI: mesmo assim, R$ 2,15 bi até 2019. Os investimentos, pois, ficaram bem aquém do anunciado; o que não impediu que o processo decisório centralizado fosse implementado e se consolidasse.
De forma mais estruturada que na versão de 1996 (Dec. nº 1.990/96), a desestatização (privatização) das autoridades portuárias e/ou dos portos organizados (portos públicos) voltou à pauta: é diretriz e uma das principais bandeiras do governo federal. Atração de investimentos é, mais uma vez, a principal justificativa.
O modelo não está claro; apesar de que as recentes decisões no processo da CODESA, ainda que não tratem de investimentos, deem algumas pistas para ajudar a montar o quebra-cabeças. Três dúvidas surgem, quase invariavelmente, quando em público o tema é tratado: i) isonomia no ambiente concorrencial; ii) participação dos stakeholders locais no processo decisório; e, iii) exercício da função de autoridade portuária (multi-articuladora, arbitral; etc): seja quanto à possibilidade de compatibilizá-la com o objetivo de um 3º na exploração do “ativo”; seja porque, como se sabe, tal função é “imprivatizável”. Nem na Austrália o foi!
A resposta normalmente é que a definição das políticas, o planejamento e a regulação seguirão sendo feitas pelo poder público. Que poder público? Se atualmente as autoridades-administradoras portuárias já não desempenham nenhuma função estratégica, após privatizadas as empresas que as exercem, haveria outros órgãos que não o MINFRA e a ANTAQ?
Como o arranjo a ser definido deve se tornar um padrão para todos os portos, estaríamos a caminho de algo como uma Autoridade Portuária Nacional? Vindo ou não os investimentos aventados, seria essa uma reforma portuária; só que, diferentemente das anteriores, sem alteração da legislação?
Com olhares fixos nos atos praticados, ou nas medidas anunciadas, de fato fica difícil de ser percebido. Mas o revisitar as últimas 3 décadas da vida portuária brasileira, na linha de “lessons learned”, 3 elementos imanentes chamam atenção. Principalmente porque o País viveu, nesse período, ciclos e situações econômicas bastante distintos e teve governos de 4 partidos que, ao menos em tese, cobririam quase todo o espectro político-ideológico.
Dois dos elementos são mais claramente perceptíveis: i) atração de investimentos como argumento “de venda”; justificador dos planos e decisões; e ii) para o bem e/ou para o mal, ampliação (contínua) do espaço privado na operação, gestão e, mesmo, formulações do setor. E um terceiro; esse nem sempre visível a olho nu: re-centralização (contínua) do processo decisório a partir do final dos anos 90. Re-centralização porque, até os anos 80, a estrutura e processo decisório portuário tinha como vértice a Portobras.
O desafio, então, fica por conta de explicar-se a descentralização (do processo decisório), participação (dos stakeholders) e autonomia (do arranjo de governança local) no curto espasmo entre os dois modelos; distintos em vários aspectos, mas ambos centralizados.
Seria um derradeiro rescaldo da disposição de participação, e da ideia/convicção (pretensão?) de cidadãos e sociedade civil organizada, forjadas nos movimentos e processos dos anos 80, de poder influir nas decisões de política pública?
Na atual conjuntura, essa reflexão pode ser mais que uma mera curiosidade histórica.